quinta-feira, 19 de maio de 2011

“Quem vai pagar a conta dos megaeventos é a classe trabalhadora, o povo brasileiro”

Dando início à série de reportagens que irá acompanhar, durante todo o ano de 2011, o andamento e as conseqüências das obras da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, o Contraponto entrevistou o militante do Tribunal Popular, Givanildo Manoel.

Apresentando as discussões do Tribunal sobre o tema, Givanildo explica como os preparativos para os megaeventos têm pautado as políticas públicas do Estado brasileiro e qual a concepção por trás da realização desses eventos, que acabam funcionando como carro chefe de um processo de reestruturação das cidades, para que essas possam atender aos interesses do capital.

Contraponto (CP): Primeiramente, fale um pouco da atuação do Tribunal Popular em relação ao combate as opressões em decorrência dos megaeventos.

Givanildo (Giva): A proposta desse ano do Tribunal Popular é discutir terra e territorialidade, ou seja, a ação do capital no campo e na cidade. No campo, temos as obras do PAC, inseridas nesse processo "neodesenvolvimentista", tanto no que diz respeito à criação de "infra-estrutura" para agricultura, turismo, de forma geral, como essa necessidade do capital em obter recursos naturais. O Tribunal vai discutir o processo de opressão que vem se dando aos povos originários, povos tradicionais, os grupos que estão fazendo a luta pela terra, grupos que estão à margem de rios e mares, como os ribeirinhos e caiçaras, que também têm sido atingidos pelas obras do PAC, nas construções de portos ou de resorts.

E na cidade, com esse processo de reestruturação que se dá a partir da necessidade do capital em circular, o que conceituamos como cidade neoliberal, que tem removido grandes contingentes populacionais e, consequentemente, criminalizado as comunidades em processo de resistência.

Por exemplo, em São Paulo, cai uma suspeita imensa sobre a prefeitura, após mais de 50 incêndios nas favelas da cidade. Um dos últimos incêndios, na favela de Real Parque, ficou escancarada uma ação criminosa, com a conivência do Estado. O corpo de bombeiros chegou muito atrasado, com pouca água e com as mangueiras furadas. Não é possível que quem atue, permanentemente, para debelar incêndios tenha um equipamento com tamanha precariedade.

E o que tem se oferecido para essas famílias é o bolsa-aluguel − que não dura seis meses −, até que essas famílias sejam jogadas na rua ou expulsas da cidade, ou o "Minha Casa, Minha Dívida", que está a serviço do sistema financeiro e estruturado da pior forma possível. O trabalhador tem acesso a casa, através do sistema financeiro, mas enquanto no sistema habitacional antigo o trabalhador tinha a possibilidade, ao não conseguir pagar algumas prestações, de recuperar uma parte do que já pagou, no "Minha Casa, Minha Dívida", se ele não conseguir pagar, não tem nada devolvido. O trabalhador está sem saída, é cada vez mais oprimido.

CP: Como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 estão inseridas nesse jogo?

Giva: Totalmente inseridos. Os megaeventos consagram um projeto de cidade. É quando você tem todas as facilidades. Tem-se o argumento de organização das áreas de mananciais, as áreas de proteção ambiental e tudo mais, mas há uma grande contradição que se apresenta. Você remove a população pobre que está à margem, mas você deixa indústrias, as grandes mansões.

Outra questão é que as cidades passam a ter um alto valor especulativo para o setor imobiliário. As cidades se tornam absurdamente caras e todos os precedentes possíveis são utilizados para que esse setor possa iniciar e efetivar o processo de especulação naquela região. Ou seja, na verdade, você organiza a cidade não a partir do interesse da população, mas a partir do interesse do capital. E o megaevento é o que justifica isso.

Por exemplo, no governo federal, hoje, você tem quatro ou cinco decretos que criam facilidades para que esse tipo de coisa aconteça, para que a cidade possa se reorganizar a partir desses interesses. Instaura-se, na Copa, um Estado de Exceção.

CP: Você concorda, então, que vá se instaurar no Brasil, não só com os preparativos para os megaeventos, esse dito Estado de Exceção?

Giva: Concordo. E, na verdade, é mesmo um pouco mais grave, porque o Estado de Exceção já vem se instaurando. Existe um documento, que o governo federal disponibiliza em seu site, de Garantia de Lei e Ordem. Esse documento tem um precedente muito grave, que é a utilização do aparato de Segurança Nacional de Estado, ou seja, as Forças Armadas, em conflitos urbanos. As Forças Armadas de um país estão organizadas para proteger a nação do inimigo, que é a sua função primeira. Quando você passa a utilizar o aparato de segurança do Estado para atuar em conflitos urbanos é o mesmo que dizer que a população brasileira é inimiga.

Além da nova Lei de Segurança Nacional que o Governo Federal, através da Casa Civil, tem discutido, que classifica os movimentos sociais como terroristas. Ou seja, cada vez se tem uma ação do Estado, muito bem organizada e pensada, para impedir qualquer tipo de questionamento por parte da classe trabalhadora e do povo pobre. Penso que na Copa isso ficará ainda mais escancarado, estando ou não aprovada essa lei, porque o governo brasileiro fez uma série de acordos com a FIFA e o Comitê Olímpico Internacional (COI) que criam vários precedentes.

A questão do imposto, que é um dinheiro que não vai ficar aqui no Brasil e a FIFA vai poder explorar em diversos aspectos da economia; vamos ter a renúncia, do governo brasileiro e dos municípios, dos impostos pagos pelos hotéis; vão se criar pequenos tribunais de exceção no entorno das regiões que vão abrigar os jogos da Copa, onde as pessoas serão sumariamente julgadas, sem direito a todo o devido processo legal. Isso é Estado de Exceção, você não tem direito a defesa, vira uma ditadura.

CP: O IPEA soltou, recentemente, uma nota relatando atrasos nas obras. Qual o impacto desses atrasos para o trabalhador? E quem deverá arcar com isso?

Giva: Nós vamos pagar. Nada justifica, por exemplo, na cidade de São Paulo, que tem um estádio organizado, que tem uma estrutura para receber os jogos da Copa, construir-se um novo estádio que onera duas ou três vezes mais o valor necessário para adequar o Morumbi. Estão escancarados os interesses do capital.

E mais, apesar de a FIFA dizer nos documentos que todo o processo de construção de infra-estrutura, principalmente os estádios, ter que se dar através da iniciativa privada, aqui no Brasil tem sido diferente. O Estado tem feito o grande investimento nas obras da Copa. Alegando necessidade e importância, se faz dispensa de licitações e bilhões são destinados, de outras necessidades imediatas da população, para a construção de infra-estrutura.

CP: Quando se confirmou que o Brasil seria sede dos eventos, a justificativa era que os investimentos proporcionariam a solução de questões estruturais. Você acha que isso será de fato equacionado?

Giva: O grande exemplo disso foram os Jogos Panamericanos, em 2007, quando se falava a mesma coisa. O resultado foi um grande aumento nos índices de extermínio e aprisionamento; a Vila Olímpica hoje não tem serventia nenhuma e a comunidade continua na mesma situação que se encontrava antes ou talvez até pior. É o grande exemplo da concepção que está por trás disso: o megaevento é o grande carro chefe para a transformação das cidades para que elas possam responder aos interesses do capital. E o Estado, que é capitalista e está a serviço dos interesses econômicos, nesses momentos se porta da forma mais opressora possível, para realizar e atender essa necessidade do capital.

Do ponto de vista de promoção humana, de garantia de desenvolvimento econômico, não se tem nada. A África, que recebeu a última Copa, se encontra com a população de diversas cidades segregada e o impacto econômico foi zero, afinal, quando se abre mão dos impostos, de taxar a circulação desse capital, você abre mão de tudo e não te sobra nada. O que fica para o país são as dívidas, que te obrigam a deslocar recursos de áreas importantes do desenvolvimento para que o capital possa explorar ainda mais.

CP: Você acredita que a realização de um megaevento implica, necessariamente, em um planejamento urbano voltado pra ele? Não é possível conciliar um planejamento segundo as necessidades da população, aliado a estrutura necessária para os jogos?

Giva: O primeiro princípio do capitalismo é a exploração. O capitalismo se organiza a partir da exploração do ser humano e de uma classe específica, que é a trabalhadora. Então, não existe possibilidade, principalmente como o capitalismo tem se organizado no Brasil. O Estado brasileiro cada vez mais se organiza a partir dos interesses do capital, seja do ponto de vista econômico, da organização das políticas públicas ou da opressão, que é o mais grave nesse último período e no próximo. Não sobra absolutamente nada para a população. O país provavelmente se endividará nesse período de Copa e de Olimpíadas e quem vai pagar a conta, efetivamente, é a classe trabalhadora, é o povo brasileiro.

Não tem, racionalmente, como verificar nenhum avanço. Se você tentar fazer um exercício de quantas remoções poderão acontecer, você fica abismado. Se removerem as 160, 200 mil pessoas do Jardim Pantanal, as também 80, 100 mil pessoas de Paraisópolis, as comunidades do fundão da Zona Sul, do entorno de Itaquera, já se contradiz aquilo que o Estado e a FIFA dizem sobre "resolver os problemas do país". E estou pegando o exemplo de São Paulo porque sou daqui, mas os exemplos estão no país inteiro. Existem Comitês discutindo a Copa em todas as capitais.

Sem falar em um aumento de custo de vida absurdo. Basta observar o aumento do preço das passagens de ônibus. Não é à toa que todas as capitais tiveram aumento acima da inflação. Visa-se impedir a circulação do trabalhador e preparar o país para a chegada dos megaeventos.

CP: Afinal, todo o capital investido precisa de uma contrapartida...

Giva: Exatamente, e aqui a contrapartida é muito maior e mais escancarada. O capital investido tem risco zero, afinal é um capital financiado pelo Estado. Se ganhar, ganhou muito e se perder, também ganhou. Não tem risco para o capital aqui no Brasil.

CP: Qual você acha que seria o caminho para a população brasileira se inserir de fato nesse processo das políticas públicas para a Copa e das Olimpíadas?

Giva: Ou a classe trabalhadora percebe que esse é o momento mais grave de opressão do capital – pois, hoje, parece que não se tem inimigo algum a confrontar − ou vamos continuar pagando um preço altíssimo pela ação do capital e do Estado que a elite montou para atender aos seus interesses.

A única possibilidade nesse momento é a resistência, o enfrentamento direto à opressão que tem ocorrido. O Tribunal Popular tem dado uma pequena contribuição nesse processo para entender a importância do debate de quem está sofrendo a opressão no campo e na cidade. É preciso que a classe trabalhadora, ou parte dela, ao menos consiga se entender e se reconhecer como classe, como classe oprimida, para então formar alianças e realizar o enfrentamento. Caso não haja resistência, teremos muitos trabalhadores tombando ou sendo presos. Para esse período e o próximo, é resistir, resistir e resistir.

Por Thiago Cara, Laís Lima e Camilla Dourado, do Contraponto, publicação mensal do curso de Jornalismo da PUC-SP.

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