por Ermínia Maricato
A arquiteta Ermínia Maricato nasceu em Santa Ernestina, no interior de São Paulo, e formou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU), da Universidade de São Paulo (USP), em 1971, fato que marcou o início de sua ligação com a vida das cidades, estudando sua história e seus rumos. Mestre, doutora e professora titular da mesma universidade - onde coordenou, de 1999 a 2002, o programa de pós-graduação da FAU, a convidada da seção Encontros deste mês foi secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano da prefeitura de São Paulo de 1989 a 1992, na gestão de Luiza Erundina, e é consultora de política urbana e habitacional. É autora de seis livros - sendo o mais recente deles Brasil, Cidades (Editora Vozes, 2003) - e publicou diversos artigos em periódicos especializados no Brasil e no exterior. Na conversa que teve com o Conselho Editorial da Revista E, Ermínia Maricato analisou a origem das cidades brasileiras e o crescimento desordenado de São Paulo, e afirmou que a grande urgência da cidade é o transporte público. "A maior parte da população urbana vive um apagão nos transportes", sentenciou. A seguir, trechos.
Para falar das cidades brasileiras, é preciso lembrar que o Brasil passou por um acelerado processo de urbanização no século 20. Começamos o século com 10% da população nas cidades e terminamos o século com mais de 80%. Há 30 anos, as cidades brasileiras eram agradáveis e pacíficas, incluindo as maiores metrópoles, que raramente apresentavam problemas como crianças abandonadas, enchentes anuais, congestionamentos, poluição do ar, dos rios e dos córregos, violência etc. O que aconteceu?
Além da significativa velocidade de crescimento urbano, outras características da sociedade brasileira influíram fortemente no rumo tomado pelas cidades. A dependência econômica, que não se restringe ao século 20, determinou a existência de grandes metrópoles que concentraram poder no território. Atualmente temos 33% da população urbana do mundo morando em apenas 11 metrópoles, sendo duas delas brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, que estão entre as maiores. Essas metrópoles funcionam como um radar para a dominação econômica e cultural em todo o território, que se faz com base no modo de vida dos países do chamado Primeiro Mundo. A desigualdade social, a tradição escravista e o desprestígio ou desrespeito pelo trabalhador são outras características de nossa história que marcaram e marcam as cidades. Um dos fatores mais fortes de exclusão social é a dificuldade de acesso à terra urbana e à habitação. Nossas cidades são fraturadas, como já lembrou Zuenir Ventura. Enquanto o país cresceu a altas taxas econômicas (de 1930 a 1980), as mazelas do crescimento urbano foram amortecidas. Com a queda do crescimento econômico, o aumento exponencial do desemprego e o recuo das políticas públicas e sociais (decorrente dos ajustes fiscais), a pobreza que até então parecia ser característica do campo e especificamente do Nordeste ganha proporções nunca conhecidas nas cidades. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que as favelas cresceram muito mais do que a população em geral nas décadas de 1980 e 1990. O desemprego e a taxa de homicídios também aumentaram.
O município de São Paulo tem 1,2 milhão de pessoas vivendo em favelas. Tem um número maior do que esse de moradores em loteamentos ilegais. Apenas em cortiços moram 600 mil pessoas. Nas duas bacias que abrigam os reservatórios de água da cidade, a Billings e a Guarapiranga, vivem aproximadamente 1,5 milhão de pessoas da região metropolitana. É sempre importante lembrar que as bacias estão "protegidas" por legislações municipais, estaduais e federais.
Esses números, em maior ou menor escala, se repetem em todo o país. No Norte e no Nordeste, assim como no Rio de Janeiro, a proporção de moradores em favelas é muito maior, mas ela se mantém também no Sul e em outras partes do Sudeste. Nem mesmo a região metropolitana de Curitiba escapa a esse destino trágico por meio do qual grande parte da população (a maior parte em alguns casos) é expulsa da cidade, sofrendo um verdadeiro exílio na periferia. A gigantesca dimensão dessa segregação é desconhecida pela sociedade e especialmente pela mídia, que trabalha com uma representação ideológica: toma uma parte da cidade - a cidade fashion, a cidade do mercado, a cidade dos cartões-postais - como se fosse o todo. A realidade é oculta. Os pobres são invisíveis.
Tomemos São Paulo como exemplo. A metrópole, como quase todas as demais, está crescendo menos nas duas últimas décadas. Entretanto, ela cresce de forma desigual e irracional: perde população nos bairros centrais, já consolidados, e cresce a altas taxas nas periferias e nas áreas de proteção ambiental. Há mais de 400 mil imóveis vazios no município de São Paulo. Esse número equivale ao déficit habitacional e está concentrado principalmente no centro expandido. O Plano Diretor Estratégico [da Prefeitura de São Paulo] definiu a necessidade da produção de moradias sociais e sua localização especialmente no centro da cidade (onde os empregos se concentram) para estancar a ocupação dos mananciais e o espraiamento da cidade. No entanto, estamos assistindo a uma parceria com o mercado imobiliário que tende a renovar o centro seguindo a lógica da valorização imobiliária com expulsão do que ainda resta de população pobre.
Nesse quadro, qual é a maior urgência? Creio que é o transporte coletivo. A maior parte da população urbana vive um apagão nos transportes urbanos há mais de uma década. Se ele não ganhou as manchetes dos jornais, como ocorreu com o recente apagão aéreo, é porque essa população, de modo geral, é invisível para a mídia. Pesquisas da Associação Nacional dos Transportes Públicos (ANTP) mostram que aumentaram as viagens a pé e diminuíram as viagens em transportes coletivos nas metrópoles. Aumentou o tempo médio gasto nas viagens e piorou a qualidade. A taxa de mobilidade tem diminuído em todas as faixas de renda, mostrando que a matriz de transporte baseada no automóvel é uma falácia. Além disso, é preciso lembrar as demais características dessa matriz: poluição do ar, custos de infra-estrutura, acidentes de trânsito (são aproximadamente 40 mil mortos por ano no país), perda de horas no tráfego etc. Poderíamos começar por aí. Propostas bem-sucedidas não faltam.
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