A transformação do esporte em negócio e a lista de exigências feitas pelas federações internacionais para os países-sede de uma Copa do Mundo ou Olimpíada têm gerado lucros exorbitantes, mas somente para a Fifa, o COI e seus patrocinadores. Para as nações, quase nada sobra. É o que afirma o geógrafo Christopher Gaffney, texano radicado no Rio de Janeiro e professor visitante da pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.
Gaffney tem uma história das mais curiosas. Jogador de futebol semiprofissional, percorreu o mundo com suas chuteiras e tornou-se o maior craque de Taiwan em 1997. Quando se aposentou, perambulou por Buenos Aires e Rio de Janeiro, onde estudou a importância cultural dos estádios nessas cidades, que rendeu o livro Temples of the Earthbound Gods (algo como Templos dos Deuses Ligados à Terra), ainda não editado em português. No Rio, virou vascaíno roxo e especialista em impactos urbanos provocados por grandes eventos. Nesta entrevista, diz o que espera das mudanças previstas para a cidade depois da Copa 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016.
Leia a íntegra da entrevista aqui.
CartaCapital: O senhor costuma dizer que a identidade cultural do futebol brasileiro está ameaçada. Por quê?
Christopher Gaffney: Porque hoje existe um movimento no futebol brasileiro para tornar o fã um consumidor. Esse espaço de lazer e participação popular é cada dia mais para poucos que podem pagar.
CC: E essa mudança tem relação com os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo?
CG: Sim, para montar um evento nas cidades é fundamental construir meios de transporte, rede hoteleira etc. E alguns fatores típicos do neoliberalismo, como a privatização do espaço público, da valorização do cidadão por sua capacidade de pagar por segurança, educação e transporte, estão refletidos nesses eventos que o Brasil vai sediar.
CC: E quando houve essa guinada do esporte para o negócio?
CG: Nos Jogos Olímpicos, a partir de Los Angeles 1984, que foi a única candidata. Até então havia a ideia de que se perdia dinheiro com o evento. Em Los Angeles, os empreendimentos eram públicos, mas já estavam prontos. E havia patrocinadores privados. Deu um lucro tremendo. O auge dessa transformação das Olimpíadas foi em Barcelona, em 1992.
CC: Barcelona é considerada o exemplo mais bem-sucedido de adequação por meio dos Jogos Olímpicos. É um exemplo a ser seguido?
CG: Depende do critério. A Olimpíada ajudou a cidade a se transformar num dos principais centros turísticos do mundo. Mas é preciso lembrar que Barcelona tinha um plano diretor desde o início dos anos 1980 e a Olimpíada fez parte dessa transformação de 20 anos. Os jogos foram pensados como parte dessa transformação e não o fator determinante dela.
CC: Mas viver em Barcelona é melhor após 1992?
CG: Depende. Com a Olimpíada, o aluguel explodiu na região central e expulsou as classes mais baixas para a periferia. Mudou a essência da cidade.
CC: O senhor acompanhou a preparação para os Jogos Pan-Americanos de 2007 no Rio de Janeiro. Como avalia o legado que ficou para a cidade?
CG: Os comitês organizadores dizem que não houve nenhum legado urbanístico do Pan. O legado maior foi que essas mesmas pessoas se credenciaram para organizar a Olimpíada. Só que a preparação para o Pan foi uma desorganização total, houve fortes indícios de superfaturamento e, no final, o evento custou dez vez mais. O (parque aquático) Maria Lenk não é adequado para os Jogos Olímpicos e será reformado. O estádio do Engenhão foi orçado em 120 milhões de reais, mas custou 430 milhões. Desorganização e falta de transparência totais.
CC: Em São Paulo, o Itaquerão receberá isenção fiscal porque ele trará benesses para a zona leste. Faz sentido esse argumento?
CG: Não conheço nenhum caso no mundo onde isso tenha ocorrido. As pessoas não querem morar perto de um estádio. No Engenhão não houve melhoria nas ruas do entorno ou na vida das pessoas do bairro. Além disso, a cultura brasileira de ir ao estádio não é do sujeito que passa o dia no entorno fazendo compras para só depois ver o jogo. A lógica econômica dessa afirmação simplesmente não existe. Na maior parte do tempo o estádio estará fechado, e o entorno, vazio.
CC: É possível comparar a organização da Copa do Brasil com a da África do Sul em 2010? A Copa africana foi uma boa experiência?
CG: Pesando na balança, sim. Foi boa culturalmente para os sul-africanos para quebrar um pouco as barreiras sociais que ainda são muito fortes e passar essa imagem ao mundo. Mas a dívida sul-africana com as obras do Mundial eram de 4 bilhões de dólares, a mesma quantia que a Fifa anunciou como lucro. Se você gasta 4 bilhões de dólares, deveria ter 8 bilhões de lucro. Então foi uma transferência direta de dinheiro público sul-africano para a Fifa. E nove dos dez estádios não estão sendo utilizados regularmente.
CC: O mesmo pode ocorrer no Brasil?
CG: Sim. Quem organiza a Copa no Brasil é Ricardo Teixeira, caso único em que o presidente da federação nacional também organiza o Mundial. A filha dele é secretária geral do comitê, então é uma coisa familiar. E não existe estrutura centralizada, não se sabe quem assume responsabilidades. E depois, quando apertar, a responsabilidade vai cair no colo do governo federal, como aconteceu no Pan. Quando foi o Rio foi eleito a cidade-sede dos Jogos de 2016, Lula assinou um cheque em branco de 29 bilhões de reais ao COI. Na hora do aperto, o poder público vai ter de arcar com os custos.
CC: O senhor vê algo de bom na organização da Copa no Brasil?
CG: É uma oportunidade perdida. Estamos tentando construir aeroportos para atender à demanda de 2014 no lugar de preparar as demandas de 2050. É tudo pensado para curto prazo. O planejamento urbano está sendo dirigido pelos grandes eventos e não usando os grandes eventos para melhorar as cidades.
CC: E as Olimpíadas do Rio em 2016, estão no mesmo caminho?
CG: Absolutamente. Se você vir o mapa da região metropolitana do Rio e comparar com o mapa olímpico, você vai ver que esse último atinge a Barra da Tijuca. Estamos privilegiando uma zona da cidade já privilegiada. De quem são os interesses por trás disso?
CC: Pode ocorrer no Rio de Janeiro o que houve em Barcelona?
CG: Com certeza. Com a especulação imobiliária na zona sul, famílias de classe média baixa estão indo para outras regiões onde não existem melhorias urbanísticas com os Jogos. Na teoria, a ideia de se sediar os Jogos é de se laçar uma malha de transporte por toda a cidade, mas na prática está isolando comunidades e cortando a cidade em pedaços, talvez para sempre.
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