Por Katia Marko, com colaboração de Lucimar Siqueira, Luiz Alberto Pires e Sérgio Baierle
O jornal Brasil de Fato publicou trechos de uma entrevista exclusiva realizada pelo GT Comunicação dos Comitês Populares da Copa de Porto Alegre com o professor adjunto do Instituto de Geografia - PPGEO (Prog. de Pós-graduação em Geografia) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante do Comitê Popular da Copa do Mundo e das Olimpíadas no Rio, Gilmar Mascarenhas.
Gilmar Mascarenhas fez doutorado em Geografia Humana pela USP, sob orientação da Dra. Odette Seabra. A sua tese, defendida em 2001, enfoca determinados aspectos da presença do futebol na evolução urbana brasileira. Também estudou, a partir de 2003, a política urbana relacionada à organização e realização dos Jogos Panamericanos na cidade do Rio de Janeiro em 2007: a concepção de gestão urbana, os interesses envolvidos, a reação da sociedade civil organizada, a parceria público-privada, os impactos e o legado futuro do Pan-2007.
Gilmar Mascarenhas e Lucimar Siqueira |
O professor de geografia diz que nos últimos anos o Brasil optou por se projetar mundialmente através dos megaeventos, mas que o custo disso quem paga é o cidadão. “Os efeitos desses eventos são dívidas e o desfinanciamento de áreas como a saúde e a educação. No ano do Pan, o Rio enfrentou sua maior epidemia de dengue. Todo o dinheiro estava comprometido com os jogos. Os eventos são para assistir e não para desenvolver o esporte”, explica.
Segundo ele, hoje os eventos esportivos carregam interesses econômicos, políticos, sociais e ideológicos. E por demandar um investimento cada vez maior, a sociedade civil começou a exigir e discutir o legado desses eventos.
Leia a íntegra da entrevista.
Você defendeu sua tese de doutorado em 2001 sobre a presença do futebol na evolução urbana brasileira e, desde então, vem pesquisando o tema dos esportes na vida urbana. Que conclusões você chegou?
Gilmar Mascarenhas - Em 2003 eu comecei a estudar os impactos dos Jogos Panamericanos sobre a cidade. Elaborei um histórico sobre grandes eventos esportivos (Jogos Olímpicos, Panamericanos, Copa do Mundo) para verificar que tipo de impactos e arranjos de políticas urbanas foram sendo feitos. O que encontramos nesses estudos é que quase sempre você tem a gestão urbana como um duelo entre interesses sociais e das grandes empresas. Esses grandes eventos se tornaram uma porta, para que através de uma situação extraordinária, grandes projetos urbanos capitalistas, encontrem uma ocasião especial para se impor, a despeito dos regulamentos urbanísticos e ambientais e dos interesses sociais.
Também verifiquei que, durante uma época muito extensa, havia nesses grandes eventos uma relativa preocupação com o interesse social. Um exemplo disso, era a destinação das vilas olímpicas para habitações de média e baixa renda. Isso se verificou da década de 1950 (no contexto do Estado de Bem Estar Social) até 1980, em Moscou. Já a partir de 1988, em Seul, as vilas olímpicas passam a ser projetos de habitação, digamos, para classes sociais mais altas.
No meu estudo verifico dois processos que vinham andando de maneiras distintas e independentes. Um deles, no âmbito da gestão do esporte, eram as mudanças, a maneira como o esporte se organiza, enquanto uma indústria. De outro lado, uma mudança na questão da gestão urbana, do planejamento urbano. Esse último é mais conhecido. Sabe-se que depois das décadas de 1970, 1980 esse modelo de plano diretor ou master plan, planejamento compreensivo e tal, ele começa a entrar num desgaste. Começa o discurso de que faltam recursos para o Estado e consequentemente a defesa do “Estado Mínimo”, da doutrina neoliberal. Enfim, há todo um movimento que vai fazer emergir o que seus defensores chamam de planejamento estratégico. E, ao mesmo tempo, essa mudança que o David Harvey coloca muito bem que é a guerra entre os lugares. Que o capital está muito mais fluido no planeta, e aí as cidades teriam que competir entre si para atrair mais investimentos. É uma guerra de marketing, de city marketing. Bom, isso no âmbito da gestão urbana.
E o que acontece com o esporte?
O esporte é uma atividade que há mais de um século adquiriu um patamar de organização muito forte no mundo inteiro. É hoje um fenômeno social universal. Embora sempre muito ligado a interesses econômicos, o espetáculo, a venda de ingressos, ocorre uma mudança brusca na década de 1980. No âmbito do futebol, começa na Fifa com João Havelange, brasileiro que assume em 1974. Ele, na posse já diz assim: “Eu vim mudar inteiramente a forma como a Fifa funciona. Eu vim vender um produto chamado futebol”. Até então você tinha as transmissões públicas, abertas. Havelange começa a vender a transmissão das imagens da Copa do Mundo numa escala de valores exponencial. Em 1980, no âmbito do Comitê Internacional, também se elege o Juan Antonio Samaranch, um espanhol que tem no seu passado político um forte envolvimento franquista, tendo sido membro da Falange Española em sua juventude, e recebido diversas nomeações políticas enquanto o regime esteve vigente. Ele retoma essa mesma atitude, de juntar os grandes negócios com o esporte.
No caso do olimpismo, isso é gritante. Até então os Jogos Olímpicos tinham um ideário muito forte, ligado lá na origem da retomada das práticas corporais lúdico-esportivas na idade moderna. O esporte como uma linguagem de integração entre os povos. O esporte como uma prática de regeneração das pessoas, de saúde física, mental. Mens sana in corpore sano, todo esse ideário do esporte olímpico que dizia que deveria afastar qualquer coisa ligada a dinheiro. Até a chegada de Samaranch o atleta olímpico é aquele sujeito que jamais havia ganho um centavo sequer pelo esporte. Esporte por amor, por uma causa: a causa esportiva. Havelange e Samaranch vão cortar tudo isso. Esporte é dinheiro, eis o novo lema. O novo modo de gestão do esporte se associa às grandes mídias, à expansão da TV. A televisão tem um apelo forte de assistência e essas empresas vão perceber ali um canal muito forte. O corpo do atleta é o corpo mais exposto na mídia. A mídia pode apoiar o cinema, o teatro, as outras artes, mas não vai poder colocar na testa ou na camisa de ninguém uma Coca-Cola. O que é um corpo esportista? É um corpo todo ele loteado. No futebol, os clubes alugam para as marcas o calção, a manga... Um corredor de Fórmula 1 tem todos os milímetros do corpo medidos em valores econômicos. Quanto vale a exposição daquilo ali? Então, essa expressão midiática do esporte, essa relação entre negócio, mídia e esporte vai virar esse grande complexo econômico que nós temos no mundo de hoje.
Que mudanças esses dois grandes processos trouxeram na realização dos megaeventos?
Com a gestão urbana nessa conjuntura neoliberal que vivemos hoje, city marketing (guerra dos lugares, guerra das cidades por uma imagem internacional que sugira ambiente seguro e promissor para investimentos) e o esporte tornado essa nova indústria muito forte, as cidades vão perceber que realizando megaeventos esportivos vão se projetar mundialmente, porque são espetáculos que bilhões de pessoas assistem. Além disso, o esporte traz um ideário de forte conteúdo positivo: praticar esporte é saúde, vigor, juventude, competitividade, a união dos povos. Quer dizer, há todo um complexo simbólico que envolve o esporte e que ele vai emprestar às cidades e aos países que vão realizar esses megaeventos. Então, verifico essa confluência de interesses entre a evolução da gestão urbana nos últimos 30 anos e a evolução do mundo do esporte. Isso vai fazer com que mude a forma de realização desses eventos vivida até a década de 1980 que era gastar pouco e de alguma forma deixar um legado habitacional no caso dos Jogos Olímpicos. Vou dar um exemplo forte. Na Copa do Mundo da Espanha em 1982, nós temos uma partida que ficou marcada para o Brasil (foi eliminado em jogo dramático contra a Itália), realizada em um estádio chamado Sarriá, de pequeno porte em Barcelona, que atualmente não serviria nem para treinamento das seleções para a Copa do Mundo. A Fifa exige hoje estádios de um padrão tecnológico, construtivo altíssimo. Estou falando da Fifa, mas poderia falar também do Comitê Olímpico. Então, qual é para mim o cerne da questão? A questão do legado no plano esportivo é que antigamente fazer um megaevento esportivo era um país ou uma cidade receber os povos de todo o planeta para praticar esporte nas condições em que o esporte era praticado ali. Como é que se pratica esporte no Brasil? Se pratica assim, dessa forma, nestas instalações, desse jeito, então era como dizer, vem jogar comigo, vem compartilhar a experiência rica da alteridade, de aprender com o outro, de viver outras culturas. Os megaeventos de hoje anulam as singularidades locais, regionais, nacionais, pela imposição de um padrão único internacional, de instalação esportiva, de ritual, de procedimentos. A sede do megaevento se torna assim um não-lugar, pois iguala-se a todos os outros. A única expressão de identidade local fica por conta das cerimônias olímpicas de abertura, onde cada cidade e país procuram contar um pouco de sua historia e de sua cultura. No mais, tudo é normatizado, padronizado, pasteurizado. A vila olímpica, por exemplo, obedece a um padrão internacional. Os atletas ali dentro, confinados no luxo, não se sentem em outro país, em outra cultura. Estão num lugar desprovido de identidade, como são os aeroportos. Ao montar um cenário totalmente novo, com estádios superdimensionados, logo depois que o circo acaba, fica o país, a cidade com um acervo de equipamentos esportivos que nada condiz com as demandas, com as necessidades do seu público.
Como você avalia a construção dos estádios para a Copa do Mundo 2014?
Menos da metade das 12 cidades-sedes tem regularmente clubes na primeira divisão. Menos da metade das cidades tem um mercado capaz de manter aqueles estádios. Manaus, Cuiabá, Brasília e Natal são cidades sem clubes na primeira divisão, nem na segunda... Então está se construindo estádios que depois serão verdadeiros elefantes brancos. Um estádio desses tem um custo de manutenção que é entorno de 10% ao ano do custo de construção dele. É um custo muitíssimo alto. Você só consegue justificar esse custo se tiver uma fluência de público constante. Vide o caso da Copa do Mundo de 2010, na África do Sul. Foram construídos novos estádios, e agora o governo não sabe o que fazer com eles. O caso mais dramático é o estádio Green Point, construído na Cidade do Cabo. A um custo de meio bilhão de dólares, em zona nobre da cidade (Green Point é uma bela área verde, junto ao centro e ao porto que foi renovado, tornado área de lazer), o estádio atende a um padrão de sofisticação que não era interesse do governo local. Este queria um estádio mais modesto e localizado em zona menos valorizada, ciente de não ser o futebol um esporte de grande popularidade na região. Mas a Fifa demandou aquele equipamento caro, cuja localização pudesse exibir ao mundo uma África civilizada, moderna, desfrutando da bela paisagem costeira, tendo ao fundo o Table Mount, montanha turística que constrasta de forma magnífica com o mar. O resultado é que este estádio custa aos cofres públicos 4,6 milhões de euros anuais, e sem a menor perspectiva de retorno desse investimento. Então, a gente começa a pensar assim: como é que fica a questão da soberania nacional por conta desses megaeventos? O quanto os países se vendem e abrem mão da soberania nacional porque a Fifa falou que quer o estádio aqui. Na cidade de Johanesburgo também se construiu um estádio. Eu tenho uma citação da época de um conselheiro municipal, o sr. Benit-Gbaffou. Ele disse: “Trazer a Copa do Mundo é desenvolver a cidade. Isso torna ela cara. Não tem outro jeito, os pobres vão ter que sair, a cidade precisa apenas daqueles que podem pagar por ela”. E um depoimento de um morador: “Eu chorei duas vezes por causa dessa copa. Primeira vez foi quando o país foi eleito para a Copa. Eu chorei de emoção. Depois chorei quando perdi a minha casa, onde eu morava há 30 anos”.
Observemos o caso de Recife, que tem três clubes de futebol importantes, Sport Recife, Santa Cruz e o Náutico. Cada um tem seu próprio estádio, mas vão construir um novo estádio para a Copa. A pergunta é: Qual o clube que tem seu próprio estádio há várias décadas, onde construiu sua história, sua identidade, e, do ponto de vista prático, onde pode jogar com lucro, pois com despesas bem menores, vai deixá-lo para jogar no estádio da Copa, que fica no município da grande Recife, em São Lourenço das Matas, longe das massas e a um custo muito superior?
Já foram aprovados pelo BNDES R$ 400 milhões, agora mais R$ 280 milhões. Vão fazer ali a Cidade da Copa. É todo um projeto de conjunto residencial, um shopping center, um centro médico, ou seja, a ideia de construir um bairro de classe média nessa região e no meio dele um estádio. E esta área não é um vazio urbano. Estive lá, moram muitas famílias, as pessoas plantavam ali. Essas pessoas todas serão varridas dali, em nome de um empreendimento imobiliário que tem como cerne, ou motivação central, um estádio condenado ao abandono e a produzir dívidas públicas.
A Fifa e o Comitê Olímpico exigem instalações esportivas num padrão arquitetônico e tecnológico que estão muito além da capacidade dos países?
O caso da África do Sul no ano passado é emblemático. Um país onde o futebol tem um apelo popular, sobretudo na população negra e pobre, porque a classe média é adepta do rugbi. Você pega os jornais de grande circulação e só vê rugbi e futebol europeu, numa clara rejeição ao futebol local, por ser este apoiado pelos pobres. Mesmo assim, fizeram estádios caros, dentro das exigências da Fifa. Até mesmo o Globo Esporte exibiu recentemente matérias que apresentaram o quadro de abandono e inutilidade da maioria dessas instalações. Alguns em cidades pequenas, como Iokkane e Mpulanga, cujos governos locais não têm recursos para manter estes novos elefantes brancos em sua paisagem.
E na África do Sul os movimentos sociais foram muito fortes. Isso é um dado novo. Nos últimos 10 anos vem se criando uma consciência de que esses megaeventos são muito caros, são feitos com dinheiro público e tem que deixar algum legado para a população. Isso é um dado que é recente na história desses megaeventos. A África do Sul promoveu diversas manifestações.
No caso da China, um governo altamente autoritário, também houve manifestações. No percurso da tocha olímpica, pelo mundo, vários movimentos internacionais se interpuseram à marcha para criticar a postura do governo chinês em relação ao Tibet. O Comitê Olímpico Internacional sabe que tem nas mãos um produto muito caro, que é a imagem dos jogos olímpicos. Não interessa ao comitê manchar essa marca valiosíssima. Não interessa que os jogos apareçam como algo que causou um prejuízo à cidade, ao país, ou que esteja associado a movimentos e interesses que o senso comum renegue. Então, o comitê solicitou ao governo chinês que ele não fosse tão autoritário assim, que ele permitisse que a sociedade civil fizesse manifestações. Claro, em locais distantes, fora do alcance da mídia internacional, mas que fizesse isso. As pessoas que quisessem fazer um ato tinham que se dirigir até a autoridade policial mais próxima e fazer o pedido. O que fez o governo chinês? As pessoas se dirigiam à delegacia, faziam o registro e eram presas no ato. Só saíram depois que acabaram as olimpíadas. Então, eu vou concordar com o professor Carlos Vainer que vem trabalhando com o conceito de “cidade de exceção”. Você cria essa cidade de exceção, um ambiente jurídico-político diferente, que paira sobre as normas estáveis do estado de direito, e coloca o evento como se fosse algo grandioso, reluzente, que cai do céu como uma solução para os males do país. Vou lembrar o discurso do presidente Lula na Dinamarca: “Finalmente o Brasil conquistou sua cidadania internacional”. O que significa isso? Significa apenas você realizar uma olimpíada, não é você conquistar patamares superiores de educação, saúde, habitação, saneamento...
No caso dos jogos de Atenas, o governo quer apagar da sua história. Foi um evento que apenas expôs as dificuldades do país. Um país que vive hoje uma crise imensa também em função da dívida desse megaevento. Isso não interessa ao Comitê Olímpico. Por que Atenas entrou no jogo? Porque Atenas empresta ao Comitê Olímpico uma legitimidade que o movimento olímpico precisa ter. O olimpismo vem lá dos tempos clássicos da Grécia antiga, de Olímpia. Então, são supostamente fiéis a uma história de longa data. Atenas entrou para emprestar credibilidade, dar legitimidade e acabou causando vários problemas. No ano passado, em novembro realizamos o ETTERN-IPPUR, uma conferência internacional sobre cidades e megaeventos. Diversos estudiosos vieram de outros países para debatermos esse tema emergente. Da Grécia veio o Stavros Stavrides, professor da Universidade de Atenas. Ele nos trouxe um panorama bastante crítico de tudo o que ocorreu no país antes, durante e após as olimpíadas. Da mesma forma, contamos com outro acadêmico, o Alan Mabin, da África do Sul, para relatar os processos ali ocorridos. Em comum, vimos o autoritarismo, a ausência de diálogo, a repressão aos movimentos sociais, os gastos elevados e o legado ínfimo.
É real esse ideário de que o megaevento vai desenvolver uma cidade, um país?
A partir do estudo que fiz acerca dos Jogos Panamericanos no Rio pude comprovar que não. A previsão inicial era gastar R$ 250 milhões e foram gastos R$ 3,7 bilhões, e mais de 90% foi investimento público. Ou seja, um gasto muito alto, quinze vezes mais que o evento que o antecedeu, os Jogos Panamericanos de Santo Domingo, em 2003. E um gasto num evento que comprometeu seriamente a saúde, a educação da cidade porque a Prefeitura desfinanciou diversos setores. Vou citar só dois casos: o Rio viveu a maior epidemia de dengue da sua história porque se desmobilizou no enfrentamento desta questão, e em outubro de 2007, três meses após os Jogos, a encosta do Túnel Rebouças desceu, soterrou a entrada do túnel. Felizmente sem mortes, apenas o dano para a circulação de veículos. Qual foi o motivo disso? Existe uma empresa, a GeoRio, que monitora todas as encostas da cidade. A partir de 2003 a Prefeitura reduziu a 1/3 o contrato feito com a GeoRio. Então ela reagiu assim, como que quisessem dizer: “Tá bom, vocês fingem que pagam e eu finjo que vou fazer meu trabalho”. Felizmente não houve vítimas, mas desmoronou a entrada de um túnel importantíssimo para a cidade do RJ. Lembro as palavras de um colega que participou do Comitê Social do Pan (eu participei da fundação desse comitê no ano de 2005), em uma entrevista numa rádio do Rio: “O Pan se ergue sobre montanhas de cadáveres”, relatando a situação dos hospitais públicos municipais que antecederam os jogos Pan.
No caso de Santo Domingo, estive lá para conferir o legado do evento. Ele custou 240 milhões de dólares, oito vezes mais que o inicialmente previsto. Toda a periferia da cidade foi relegada ao abandono. Apenas a zona leste, que é a zona de expansão do capital imobiliário, foi beneficiada. A cidade consolidou com o Pan 2003 sua natureza segregada. Neste quadro de injustiça social, uma liderança nacional, o padre salesiano Rogelio Cruz, da teologia popular, mobilizou a sociedade contra os desperdícios e acintes dos jogos na República Dominicana e foi intensamente censurado e perseguido. No dia da abertura dos jogos, Rogelio Cruz liderou, a partir de Cristo Rey, bairro pobre da capital, uma passeata de 500 manifestantes, portando uma tocha da fome (paródia à tocha olímpica). O protesto, que se propunha a denunciar a situação nacional (e não impedir ou boicotar o evento) foi violentamente reprimido pela força policial militar, a tiros de escopeta e gás lacrimogêneo. O bairro manteve-se militarmente ocupado durante todo o evento. O então presidente da República, Hipólito Mejía, declarou à imprensa que o referido padre, a quem designava de “o novo Mao Tse Tung dominicano”, padecia de problemas psíquicos. O acesso ao aeroporto foi ampliado e melhorado, de forma que o projeto de cidade é claramente desenvolver o turismo, que é um dos esteios da economia nacional. A situação dos pobres não foi afetada, exceto pelo aumento da dívida externa junto ao FMI, que acaba incidindo justamente sobre os setores de investimento em serviços fundamentais à população de baixa renda. Ao menos, o Pan 2003 não desperdiçou tanto dinheiro em instalações, como fez o Pan do Rio.
No caso dos Jogos deste ano, em Guadalajara, no México, o que venho acompanhando à distância sugere os mesmos problemas gerais. A vila panamericana, por exemplo, já mudou de lugar três vezes, por desrespeitar a legislação e atacar os direitos dos pobres, que reagiram e continuam reagindo. Inicialmente a vila estava prevista para ser edificada em Parque Morellos, vizinho à área central da cidade, com objetivos de revitalização do bairro e aproveitamento dos atrativos históricos do centro. Foi transferido o projeto para o Parque Alameda, e deste para um terceiro local, El Bajío, no município de Zapotan, onde também encontra protestos populares intensos, posto que implica em remoção forçada de população residente. Todavia, estando já há poucos meses do evento (que ocorrerá em outubro), mesmo com embargo jurídico, o governo nacional mexicano, pressionado pela Odepa e pelos empresários envolvidos, interviu e decretou que a vila não poderia deixar de ser edificada no local, a despeito dos moradores afetados.
Em suma, em todas as edições de megaeventos esportivos surgem as mesmas promessas, que não são cumpridas. Não por acaso, as últimas edições dos jogos olímpicos expressam um descontentamento crescente e a eclosão de movimentos civis anti-olímpicos. O auge desta “crise” foi Atenas (jogos de 2004), que, como vimos, custou elevadas cifras, gerou prejuízo e pouco beneficiou a população local. Preocupado com o desgaste da imagem olímpica, no ano seguinte, o COI elegeu Londres para sede de 2012 com base na dimensão “social” do projeto, que apontava para a completa regeneração urbana de uma zona desindustrializada, decadente. Um projeto que olhava para a periferia da cidade e que, de alguma forma, resgata o mito do modelo Barcelona, que conseguiu conjugar a grandiosidade do evento com projetos de revitalização de zonas decadentes e extensão de infra-estrutura urbana para o subúrbio. Todavia, mesmo em Londres, podemos observar um processo arbitrário de retirada de populações e sobretudo pequenas empresas (umas 300, segundo o geógrafo Mike Raco, do King´s College London), da área onde se ergue o Parque Olímpico. Ou seja, não era um vazio abandonado, ali havia muita gente e uma vida econômica intensa.
Nesta pesquisa você estudou o que foram os jogos panamericanos no passado aqui no Brasil...
Sim, o Pan do Rio foi o segundo no país. Em 1963, ocorreram os Jogos Panamericanos em São Paulo. Fui a SP, na Biblioteca Pública do Estado e levantei dados em jornais e revistas da época (sobretudo na revista Manchete). E foi até surpreendente ver o quanto havia um descompromisso do Estado em relação ao evento. A organização era por conta e risco do Comitê Olímpico Brasileiro. Os países montavam seus eventos, vendiam os ingressos, faziam acordos de patrocínio. Se o evento daria lucro ou não era um problema do movimento esportivo, e não um problema público, do governo. Os gastos por isso foram mínimos, usaram todas as instalações que já existiam em SP. O evento custou, na época, 500 milhões de cruzeiros. Todo este dinheiro era suficiente para então adquirir apenas 34 automóveis wolkswagen do tipo fusca, zero quilômetro. Utilizando a tabela de correção monetária do Ministério da Fazenda, corrigimos estes valores para atualidade (junho de 2011), o Pan-1963 custou aproximadamente R$ 25 milhões, ou seja, 6,3% do custo do Pan-2007 (também em valores atualizados). Em outras palavras, o Pan do Rio custou 150 vezes mais que a edição paulista. Portanto, comparado ao panorama atual, um evento desta natureza custava muito pouco ao país. O fato de utilizar instalações pré-existentes e de não assumir gastos de outras delegações, tornava o evento bastante “barato”. O fato de, naquela época, o evento acolher apenas um terço do total de atletas que hoje costuma receber, não justifica uma diferença tão absurda nos custos de sua realização. As arenas são as mesmas, o calendário também (quinze dias de competições), mudaria apenas, basicamente, as dimensões da vila panamericana.
E a vila olímpica?
A USP estava construindo seu novo campus no Butantã. Então o comitê olímpico solicitou o empréstimo do CRUSP (Conjunto Residencial da USP, edifícios ainda não totalmente concluídos) e, mesmo obtendo cessão gratuita do alojamento cobrava diária de todos os atletas. Ou seja, os países pagavam diárias para colocar em quartos pequenos quatro rapazes e em outros seis moças, utilizando camas (beliches) emprestadas pelo Exército Brasileiro, em condições que hoje consideraríamos por demais espartanas. A previsão era de menos moças do que rapazes. Peguei imagens interessantes desses jovens atletas no mês de maio, junho em SP, frio, lá naquele deserto que era a USP na época. Como se divertiam? Faziam fogueiras, tocando violão à noite. Hoje esses mesmos jovens desfrutam de boates e sofisticações mantidas e pagas, muitas vezes, com nosso dinheiro. É outra situação, bem diferente. Como era caro participar da festa naquele tempo, alguns países latinoamericanos mandaram apenas os seus representantes burocráticos para participar da reunião da Odepa. E teve um caso, acho que foi da Costa Rica, que mandou somente uma atleta de natação porque apenas esta tinha potencial para ganhar uma medalha.
Causa surpresa, aos que desconhecem a profunda transformação vivida pelo esporte nestes quase 50 anos, saber que a decisão do ouro olímpico no futebol transcorreu no modesto estádio Parque São Jorge, pertencente ao S.C. Corinthians, na então pacata zona leste da cidade. Mais ainda quando se descobre que a medalha foi disputada num emocionante confronto entre Brasil e Argentina. Com a nova economia do esporte, que movimenta volumosos patrocínios públicos e privados, o atleta e toda a competição se valorizaram, não mais comportando realizações em instalações esportivas que não atendam às crescentes exigências do COI e da Fifa.
Se a gente for remontar a história das vilas olímpicas, a primeira é de 1932, nos Jogos de Los Angeles. Esses jogos serviram para compor o programa de recuperação econômica dos EUA após a famosa crise de 1929. Construir instalações (incluindo a vila olímpica, um conjunto de 700 casinhas pré-fabricadas) era uma forma de gerar emprego e ter alguma estimativa de retorno com o evento. Durante mais de 30 anos, desde o início dos jogos olímpicos da era moderna (em 1896) muitos atletas vinham para os jogos com barracas de camping, feitos no verão por isso. Era praticamente um hobby. Vinham participar por conta própria e porque eles tinham amor ao esporte, prazer em participar desses encontros da juventude. Conhecer pessoas de outros países que também tinham como eles esse hobby, esse prazer de praticar algum tipo de esporte, um esporte olímpico.
Com todo o contexto político, de disputa inter-imperialista que vai anteceder a Segunda Guerra Mundial, inicia-se uma ligação do Estado com os jogos. Começam acontecer coisas como desfiles com bandeiras nacionais. Com a chegada de Hitler, em 1936, em Berlim, essa ligação do esporte com o Estado, com a raça, atinge níveis extremos. A partir daí, vai começar o pós-guerra que assiste à formação do chamado Estado de Bem Estar Social, com uma política de esporte para todos, o Welfare State na Europa Ocidental, no Canadá, na Austrália. Sociedades com fácil acesso ao esporte. As escolas na França tinham piscina, disciplina obrigatória para as crianças. Você tinha bairros com centros esportivos públicos onde moradores podiam praticar esporte, como por exemplo em Barcelona. Com essa esportivização da sociedade pós-guerra, os jovens participavam dos jogos para construir ou melhorar instalações para uma prática social, comunitária, pública e gratuita do esporte.
Até que veio os anos 1980 com essa mudança do esporte, essa onda bem privatizante. Mas nos jogos de 1963, o que aconteceu? Quando o comitê olímpico percebeu que os ingressos não iriam custear os jogos, pediu socorro à prefeitura, ao estado. Em caráter de urgência, para reduzir o prejuízo do COB, os entes governamentais doaram valores que cobriram quase a metade do custo do evento que, como vimos, custou pouquíssimo. Tem coisas até cômicas. Como SP tem uma comunidade japonesa muito forte e o basebol é o esporte mais popular no Japão, o primeiro jogo de beisebol lotou o estádio. Vinham caminhões de agricultores para ver o jogo. E o que o comitê olímpico fez? No jogo seguinte, a organização majorou em 100% o valor do ingresso. Pensaram: então, já que tem público vamos aproveitar e cobrar mais porque a gente precisa de dinheiro pra poder bancar os jogos. Observem bem: os eventos eram feitos por conta e risco e agora você tem uma situação de uma vila olímpica luxuosa, com instalações luxuosas. No caso do RJ o caso é gritante: nenhuma das instalações esportivas se prestou para qualquer uso social após os jogos. Nenhuma delas.
Inclusive a vila olímpica do Rio está com vários problemas...
Seríssimos! Este é um capítulo à parte. Vale a pena voltar um pouquinho na história para falarmos da vila olímpica do Rio. Em 1996, o Rio de Janeiro era candidato aos jogos de 2004. Porque o César Maia, com essa gestão mercadófila, colocou na cabeça que o RJ tinha que ser uma cidade olímpica, para promover sua imagem mundialmente. Naquela ocasião o poder municipal não tinha ainda montado esse aparato fechado, blindado ao diálogo com a sociedade. Havia alguns canais de diálogo. E um dos pontos do debate foi refletir sobre onde seriam as instalações esportivas.
O movimento social propôs que a maior parte das instalações fosse na cidade universitária, numa área de baixa renda. Era uma área imensa da UFRJ, então em grande parte deserta (hoje ocupada em parte pela Petrobrás). A ideia era construir uma vila olímpica que depois seria residência social. A proposta era essa para os jogos de 2004. Quando o Rio ganhou 5 anos depois o direito de sediar os jogos panamericanos, o prefeito pegou esse projeto e jogou fora. A vila seria agora na Barra da Tijuca. Onde? Justamente numa área de fronteira de expansão do capital imobiliário da Barra. Assim como, hoje também, a futura vila olímpica será numa área que pertence a Carvalho Hosken, uma área também de expansão imobiliária da Barra. Vai construir uma vila para valorizar todo o entorno.
A vila do Pan está numa área não recomendável tecnicamente para se construir. Conversei na época com vários engenheiros que visitaram a obra da vila e disseram: “Olha, as fundações vão a 60 metros de profundidade, uma construção caríssima”. São 12 prédios de 17 andares. Estive lá no ano passado, tem uma quantidade imensa de imóveis fechados. Têm imóveis que o habite-se não foi dado até hoje. Na semana de abertura dos jogos, dois trechos da vila afundaram. Um engenheiro me falou que esta vila demanda um monitoramento constante porque é não é uma área 100% segura.
Consta que o Ronaldinho Gaúcho recebeu 11 imóveis em troca de propaganda e que Romário também comprou vários imóveis que devem estar fechados. Tudo bancado pela Caixa Econômica e com recursos do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador). Um desperdício, mas cumpriu-se o papel com o capital imobiliário, pois a vila serve uma ponta de lança, um vetor de expansão de valorização daquela área. É uma área que ia acabar sendo ocupada por população de baixa renda. Está muito próxima da favela Rio das Pedras. É isso, começar a demarcar espaços de elite. Ou seja, é um uso estratégico desses jogos.
A realização do Pan ajudou na escolha do Rio para os Jogos Olímpicos?
Com certeza. Foi de longe a mais cara edição dos jogos panamericanos, em mais de meio século de história (a primeira edição foi em 1951, em Buenos Aires). A cidade demonstrou claramente sua predisposição para gastar, investir pesado em megaeventos. Como já dissemos, foi 15 vezes mais caro que os Jogos de 2003 e os jogos deste ano de 2011, no México, ficarão bem aquém da edição carioca em termos de volume de investimentos. Para além desse aspecto, há outro, decisivo. Foi feito um empenho político fortíssimo para a candidatura Rio 2016. A presença do presidente Lula sensibilizou muito o comitê olímpico. Por que o Rio é uma cidade olímpica agora? Em parte porque o Brasil vive um momento único em expressão mundial, como potência econômica emergente e teve como presidente alguém carismático e de origem sindical, ou seja, alguém que legitima no cenário externo a imagem de consolidação de nossa democracia.
O comitê olímpico tem duas etapas para eleição da cidade: uma etapa mais técnica e a outra é política. Entre Chicago, Rio, Madri e Tóquio, a escolha foi política. Das quatro cidades, a que teve a pior avaliação técnica foi o RJ. Tecnicamente falando o RJ era a pior cidade, mas venceu pelo conjunto de razões que acabamos de expor.
Em Chicago teve um movimento contra, inclusive.
Em Chicago a população disse: “Aqui não vai ser mesmo. Obama, queremos saúde e educação!”. No caso da Espanha, Madri não condiz com a idéia de mostrar que há um rodízio intercontinental no movimento olímpico, já que seria logo após a edição de Londres 2012. Então, Madri tinha a melhor proposta tecnicamente falando, mas politicamente não era interessante. Tóquio tem a questão do fuso horário e outras questões, como a proximidade dos jogos de Pequim e alguns protestos que também foram lá verificados. Então, o Brasil era a bola da vez.
Até hoje Barcelona é a garota propaganda dos megaeventos. Virou uma exportadora de um modelo. O que explica Barcelona?
Tem coisas que a mídia não conta. Primeiramente, em 1986 quando a cidade foi definida olímpica, estava no poder o partido socialista, com um plano diretor em ação para tentar suprir carências da periferia, acumuladas ao longo de 40 anos de regime franquista. Era o déficit do franquismo. O plano era bem claro: levar à periferia de Barcelona serviços coletivos como metrô, além de habitação social digna... Era colocar a Espanha próxima ao patamar de conquistas sociais dos principais países europeus. O país vinha de um atraso imenso. Então, os jogos pegam a cidade num processo político redemocratizante, e assim os jogos se adequaram à cidade em grande parte, e não ao contrário. Você pega o modelo de Barcelona e vê como é o metrô. Os jogos olímpicos foram feitos de maneira descentralizada. Tinham quatro pólos diferentes, dentro de um modelo que eles chamaram de equilíbrio espacial, e levando metrô para todas essas áreas. Os jogos de Barcelona, de alguma forma, foram bem sucedidos porque havia antes deles um plano diretor discutido, e que foi, ao menos em parte, respeitado.
Outra questão que favoreceu Barcelona é que com a criação da União Européia, a Espanha entrou num período de crescimento econômico inédito, também. Então, Barcelona também pegou os fluidos dessa nova Espanha em crescimento. Outro dado que não devemos esquecer é que Barcelona promoveu uma reforma no seusea front muito forte, mas pouco se fala que onde está a vila olímpica de Barcelona, havia um bairro chamado Icaria, um bairro industrial, operário, que estava em decadência. E todo esse patrimônio de fábricas foi colocado ao chão, alem da remoção dos habitantes.
Estava lendo um trabalho há pouco tempo dizendo que Barcelona fez três grandes eventos em sua história. Uma exposição universal em 1988, outra em 1929 e os jogos de 1992. Mas as situações anteriores, ambas tiveram a intenção de mostrar um pouco a história do país, preservar o patrimônio. Os jogos de Barcelona de 1992, em plena época que o patrimônio é tão debatido, não deu uma linha sequer a isso. Ou seja, foi a aniquilação pura e simples de um bairro inteiro.
Estive lá há pouco tempo, para ver de novo o bairro Nova Icaria. Se construiu ali um grande shopping e essa vila olímpica de classe média alta. Nas unidades habitacionais que estão para o mar, os aluguéis chegam a 5 mil euros. Uma orla altamente valorizada. Mas não se fala disso, não se fala como Barcelona varreu do mapa essas populações e o patrimônio histórico industrial para fazer os jogos.
De qualquer forma, há uma coisa muito positiva em Barcelona que foi descentralizar os jogos, levar benfeitorias até a periferia da cidade, coisa que o RJ mesmo pagando muito caro aos consultores catalães, não fez. Fez o quê? Criou uma ilusão.. Você tem a Barra onde acontece quase todos os jogos e lá na zona norte, numa área pobre da cidade, vão fazer as competições de tiro e esportes radicais. Vão fazer ali um parque temático para montain bike. Ora esse parque temático vai ficar fechado, vai ser para turistas e privilegiados poderem ir lá, pagar para, muito eventualmente poder praticar montain bike. Isso não é esporte popular. Vão colocar lá na zona norte do Rio pra dizer, olha, as olimpíadas vão até a periferia.
E hoje quem paga a conta de estádios vazios?
O contribuinte paga tudo isso, sem direito a dialogar, participar, questionar. Em Montreal, por exemplo, o déficit público só foi sanado 30 anos depois. Em 2006, o governo de Montreal disse: “Agora sim estamos quites com os jogos”. Trinta anos para pagar os jogos, realizados em 1976. Tenho um colega, economista de Munique, que vem estudando a questão do turismo há um bom tempo. Ele vem provando que a cada megaevento, os promotores vêm superdimensionando o turismo desses eventos. É sempre muito inferior ao impacto apresentado. Ele pegou o caso da Eurocopa em 2008, na Suíça e na Áustria, e mostrou que nesses países, naquele mês de julho, mês da Eurocopa, a soma dos visitantes foi inferior aos meses de julho dos outros anos quando não tinha a Eurocopa. Então, todos eles superestimam o turismo. Por exemplo, agora se fala muito em reformar osaeroportos do Brasil em função da Copa do Mundo. Quanto vai representar em termos de movimento de pessoas nos aeroportos para a Copa do Mundo? Se estima em 0,5% de aumento de fluxo. Meio por cento para a Copa do Mundo. Ou seja, é absolutamente insignificante.
O caso de Portugal, Eurocopa de 2004, merece ser citado. O país se empenhou em produzir um belo evento, com estádios sofisticados, atendendo a todas as exigências de conforto e segurança. Como sempre, o problema emerge depois que o circo vai embora. Restaram estádios de elevado custo de manutenção, alguns em cidades onde não há mercado para mantê-los funcionando. Os estádios de Braga, Leiria, Coimbra, Aveiro e Faro, juntos, geram aos municípios um custo de 13 milhões de euros ao ano, somando o pagamento da dívida assumida quando da construção dos mesmos e a manutenção dessas arenas. O caso mais aberrante é o da cidade de Faro. Imagine uma pequena cidade de 35 mil habitantes, com um estádio para 40 mil expectadores, e sem um time importante. O prejuízo é certo.
Qual foi o legado para a população carioca do Pan?
O que ficou para o RJ: nada! Ou melhor, ficaram dívidas. Por exemplo, ficou a arena multiuso feita num padrão altamente luxuoso, que passou para uma empresa, o banco HSBC, o que alugou. O complexo aquático Maria Lenk está entregue às moscas! Custou caríssimo, também. Na época, a gente tava propondo que esse complexo aquático fosse, após os jogos, utilizado pelas escolas municipais do Rio. Sabe o que foi dito pra gente? Olha, essa piscina é muito bacana pra botar criança pobre dentro dela. É muito bonita. Eles preferem deixar a piscina rachar fechada do que dar a ela um uso educativo.
Eu fui à cidade de Santo Domingo onde foram os jogos Panamericanos anteriores ao do Rio, em 2003. Tenho imagens para mostrar o que é um evento que, com todos os problemas, foi muito melhor do que o nosso e gastou-se 15 vezes menos. Fui lá e vi que a quadra poliesportiva é usada pelas crianças das escolas públicas, projetos da cidade. Como o tênis não é um esporte muito popular, quem mantém a quadra de tênis são as Associações de Tênis Americana e Canadense. Elas têm um contrato de aluguel. Como lá o inverno é muito suave, passam 6 meses ocupando essas quadras de tênis. Ou seja, custo zero para o poder público para manter a quadra de tênis. Visitei o Estádio Olímpico, modestíssimo, e a Vila Olímpica, também muito simples. Para uma classe média baixa.
Já o Rio de Janeiro gastou 15 vezes mais para fazer um evento suntuoso para dizer assim: “A gente quer mostrar que nós somos realmente um país emergente”. E o que ficou para o Rio de Janeiro? Ficaram as instalações sem uso. O legado como esporte escolar é realmente zero. Desta vez, após tantas críticas que fizemos a esse descaso total com a formação de novos atletas, resolveram construir escolas municipais nesse sentido. A primeira delas, situada no Morro dos Prazeres, já foi batizada, e com muito mau gosto: chama-se Juan Antonio Samaranch, homenageando um franquista, assumido defensor de sangrentos regimes ditatoriais, para agradar aos membros do COI. Começará a funcionar em 2012, e planeja-se turno integral de aulas, sendo pelo menos três dedicadas aos esportes.
O Estádio Olímpico João Havelange previa um centro de formação de talentos que não foi feito. O estádio foi alugado para um clube de futebol da primeira divisão que paga, se não estou equivocado, R$ 35 mil por mês. Perto do que ele custou não é nada. No RJ todos os clubes têm dívidas e agora a gente vai escutar o João Havelange propor que o governo federal anistie a dívida de todos os clubes. Só pra fechar: o Rio de Janeiro não precisava fazer um Estádio Olímpico, o Maracanã poderia ser adaptado, mas fizeram um novo estádio. O estádio ficou pronto a um custo em torno de R$ 380 milhões. Na mesma época a Suíça construiu um estádio do mesmo porte, para a Eurocopa, do mesmo padrão, a um custo equivalente ao nosso. Se a Suíça, pagando 10 ou 20 vezes mais caro pela mão de obra operária faz um estádio ao mesmo custo do nosso, tem alguma coisa errada aí.
Na época se falou muito em despoluir a Baia de Guanabara e nada foi feito. Agora, com as Olimpíadas, novamente promessas foram feitas, mas já se sabe que a despoluição não ocorrerá. Apenas um trabalho superficial, de melhorar alguns aspectos, para que o mundo, durante os jogos, não conheça a vergonha ambiental que é a nossa Baía de Guanabara. E nela intervirão tão somente por estar no caminho de quem chega na cidade de avião. É um cartão-postal da cidade, daí cuidar da aparência. Pois, do outro lado, na Baía de Sepetiba, zona oeste da cidade, nada de maquiagem e sim o serviço sujo: alocação de indústria pesada, cinzenta, altamente poluidora, com expulsão de pescadores e um novo porto para exportação mineral, que confirma a vocação nacional de reviver, em pleno século XXI, a velha condição de nação exportadora de matéria-prima para as nações industrializadas.
Também ocorreu segregação das vias públicas, impedindo a circulação da população?
Sim, se criou uma faixa exclusiva para a chamada Família Olímpica. O César Maia decretou férias escolares e disse o seguinte: “Eu proponho à população que todos saiam da cidade, vão passear em suas casas de veraneio em Cabo Frio para a cidade ficar mais tranquila para os jogos”. Se criou mesmo essas faixas e o trânsito ficou realmente difícil em diversos pontos do Rio. Havia muitas promessas de expansão do metrô. Aliás, o César Maia se reelegeu facilmente em 2004, tendo o panamericano como sua principal plataforma. Em janeiro de 2005, primeiro mês de governo, numa entrevista de página inteira em jornal de grande circulação, perguntaram sobre a expansão do metrô. Ele falou: “Não vai ter!”. - Repórter: “Mas e os jogos?” César Maia: “Não precisa”. Aí finalmente ele falou a verdade. Os jogos panamericanos são eventos de dimensão menor do que o Carnaval, menor do que o Reveillon do Rio. Então não tem metrô nenhum, ao contrário do que havia sido dito durante a campanha eleitoral.
A cidade não ganhou nenhum legado em termos de transporte público. E agora para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas vão fazer ligação do aeroporto a Barra. Assim como na África do Sul fizeram o tal do VLT, que é muito bonitinho, mas fizeram onde? Do aeroporto para o bairro nobre dos hotéis. A população da África do Sul vai continuar indo pro trabalho em vans clandestinas que é o transporte público de lá. Quem vai visitar acha muito bonito, pega aquele VLT bacana, chega no hotel e fica achando que o país realmente mudou com a Copa.
Visitei Fortaleza no ano passado. Lá vi o caso mais crítico. A cidade tem uma longa faixa ocupada por população de baixa renda que eles chamam de “comunidades do trilho”, porque existe uma ferrovia desativada que liga o Porto. Ao longo dessa via férrea, que é só de carga, tem um corredor de ocupação popular desde a década de 1950. Eles moram lá há 50, 60 anos. Ocupação irregular, no jargão oficial. A cidade de Fortaleza cresceu muito ultimamente. Surgiram alguns prédios de classe média-alta junto dessa área, shopping centers, e agora eles querem varrer a ocupação de lá. São mais ou menos umas 30 mil pessoas que moram numa faixa de uns 8 km. Querem fazer o quê? Querem abrir uma avenida e essa via de circulação que vão criar é pra ligar o nada a coisa alguma. Não tem a menor razão de fazer essa via, mas vão criar para justificar a remoção e assim seguir o ciclo de valorização imobiliária. Então tem uma luta ferrenha no Ceará. Assim, se criam propostas de transporte para, quase sempre, erradicar comunidades que estão em áreas que os moradores chamam “área de rico” e não de risco, porque elas estão ali incomodando de alguma forma.
O que tem de diferente entre uma capital e outra no Brasil em relação à Copa? Em Porto Alegre tem uma reação com os Comitês Populares da Copa. Pode-se esperar algo nas outras capitais também?
Em Fortaleza tem essa reação popular forte. Em Natal, fiquei surpreso. Estive lá em dezembro último e percebi uma opinião pública contrária à Copa, bastante difundida. A população entende que a cidade não precisa da Copa, de que a cidade não precisa fazer um estádio. Tanto que até hoje Natal ainda não licitou o estádio, porque na Câmara de Vereadores há um debate intenso. É um caso meio raro no Brasil hoje. Inclusive vi taxista falando assim: “Eu sou Lula. Mas essa coisa de fazer Copa do Mundo é uma loucura do Lula”. Dizem assim, pra quê Copa do Mundo, né? E aqui em Porto Alegre, estive em outubro e já vi um movimento forte. Brasília também está começando um movimento.
No Rio, a gente já tem um histórico do Comitê Social do Pan. O mesmo grupo está hoje no Comitê Popular da Copa. A diferença é que no Rio fala-se mais sobre os jogos Olímpicos do que a Copa, porque são os Jogos que realmente vão mudar a cidade. Já estão mudando, no plano de remover 130 comunidades e dezenas de milhares de pessoas, para abrir novas vias. O problema maior é a forma como essa remoção está sendo conduzida. A Comissão de Direitos Humanos da ONU esteve na cidade e pude acompanhar a visita, liderada por Raquel Rolnik, relatora para assuntos de direito à moradia. Além de não haver qualquer negociação coletiva com as comunidades, como reza a lei orgânica municipal, ficando tudo na base das pressões a cada individuo, e do uso da força policial para remover, a prefeitura simplesmente derruba as casas dos moradores que aceitaram a remoção. Já aqueles que ali permanecem, aguardando o desfecho da negociação, têm que suportar o quadro caótico, de viver entre escombros, um verdadeiro cenário de guerra. Escombros que impedem até a circulação, o ir e vir desses moradores. Escombros que abrigam lixo, ratos e comprometem a saúde pública.
Em suma, o poder público, que deveria zelar pela integridade e saúde, torna-se o promotor de um quadro absurdo de desrespeito à saúde e integridade dessa gente. Por fim, sob o argumento da agilidade na burocracia, o governo federal propôs e o parlamento acaba de aprovar o RDC (Regime Diferenciado de Compras) para a Copa e às Olimpíadas, que facilita ou mesmo exclui processos licitatórios habituais. Imagino então que teremos nos próximos dois anos um embate crescente, entre os que reivindicam direitos e necessidades básicas da população e os gastos absurdos com os megaeventos esportivos.
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