domingo, 30 de outubro de 2011

Como garantir o direito à moradia adequada após desastres naturais


Apresentei hoje à 66ª sessão da Assembleia General da ONU, em Nova York, meu relatório sobre reconstruções pós-desastres e direito à moradia adequada. Para ler o relatório completo, clique aqui (disponível apenas nos idiomas oficiais da ONU).
Abaixo segue uma livre tradução para o português do comunicado de imprensa divulgado pelo escritório do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos. Para ler o original em inglês, clique aqui.

Como garantir o direito à moradia adequada após desastres naturais

NOVA YORK – “Desastres podem oferecer oportunidades, mas também sérios riscos para os direitos humanos”, disse hoje a Relatora Especial das Nações Unidas Raquel Rolnik exortando os governos a irem além das estruturas físicas e dos direitos de propriedade individual em seus esforços para proteger o direito à moradia adequada dos grupos mais vulneráveis.
“Os governos devem assegurar que as catástrofes não sejam manipuladas para servir a interesses de poucos em detrimento dos mais vulneráveis​​, e que os esforços de ajuda não sejam excludentes nem discriminem estes grupos, intencionalmente ou não”, diz Raquel Rolnik.
“Muitas vezes a população mais pobre, os moradores de assentamentos informais, as minorias étnicas, os grupos indígenas, as mulheres, sofrem mais intensamente os impactos dos desastres, perdendo suas casas, suas terras, suas vidas. Estes grupos nem sempre se beneficiam da assistência aos desastres como ocorre com outros.” sublinhou a especialista da ONU.
Raquel Rolnik observou que pessoas removidas ou moradores de assentamentos informais têm sido excluídos dos programas de reconstrução e restituição da habitação porque não possuem títulos de propriedade privada. “Eles são mais vulneráveis ​​à grilagem de terras e a despejos, por isso, é hora de reconhecer a legitimidade das múltiplas formas de posse que existem no mundo e de proteger aqueles cujos regimes de posse e de propriedade são mais inseguros.”
A Relatora Especial também salientou as amplas implicações de ter plenamente em conta o direito à moradia adequada na reação aos desastres. “O foco na ‘distribuição’ de abrigos e casas como fim em si mesmo pode desviar da responsabilidade fundamental de garantir todos os aspectos do direito à moradia adequada.”
A restituição de bens e a reconstrução de habitações às vezes acontecem à custa de uma melhoria mais ampla de condições sociais, políticas e econômicas, necessárias para uma recuperação sustentável. “É preciso perceber que o direito à moradia adequada consiste tanto em garantir serviços básicos e infraestrutura, melhorar assentamentos e fortalecer as comunidades, quanto na construção de habitação”, acrescentou.
“Colocar o direito à moradia adequada no centro dos esforços de reconstrução e de recuperação após desastres não é uma tarefa fácil. Isso requer ações decisivas e disposição para enfrentar questões difíceis, como as desigualdades sociais, que são ampliadas e agravadas em situações de catástrofe. No entanto, é crucial fazê-lo se quisermos de fato tornar o compromisso com os direitos humanos uma realidade em todas as circunstâncias”, disse a Relatora. “Os direitos humanos não são suspensos quando ocorre uma catástrofe – pelo contrário, é nestes momentos que precisamos estar mais atentos a eles”.
Para solicitações de entrevista em Nova York: Fred Kirungi (Tel.: +1 917 367 3431 /kirungi@un.org)

sábado, 29 de outubro de 2011

Mobilizações nacionais e estaduais marcam Jornada Nacional pela Reforma Urbana


04/10/2011
“Para o Brasil Avançar, Reforma Urbana Já!”. É com esse lema que integrantes de movimentos e organizações sociais ligadas à moradia e à reforma urbana realizam manifestações em vários estados brasileiros. Dando continuidade às ações da Jornada Nacional de Luta pela Reforma Urbana, iniciada nesta segunda-feira (3), membros do Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) estão hoje em Brasília para entregar uma série de demandas dos movimentos ao Governo Federal.
De acordo com José de Abraão, coordenador da União dos Movimentos de Moradia da Grande São Paulo e Interior, a Jornada tem o objetivo de “acabar com as burocracias da Caixa [Econômica Federal] para viabilizar o Programa Minha Casa, Minha Vida”. Além disso, segundo o Fórum, os movimentos ainda querem discutir temas como: participação popular nas políticas urbanas, andamento das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e remoções e despejos por conta da Copa do Mundo.
Abraão destaca que a intenção do FNRU é conversar com os Ministérios e com a Caixa Econômica Federal para encontrar maneiras de desburocratizar o Programa, principalmente para as famílias de baixa renda. De acordo com ele, a burocracia dificulta o acesso, principalmente de pessoas entre zero e três salários mínimos, à casa. “Quem mais precisa da moradia fica de fora”, comenta.
As ações da Jornada já começaram em vários estados brasileiros. Em São Paulo, por exemplo, as mobilizações iniciaram na madrugada desta segunda-feira (3) com a ocupação de um imóvel do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), localizado no Centro. Na madrugada de hoje, mais um prédio foi ocupado: dessa vez, um edifício na Avenida Casper Líbero. De acordo com o Fórum, as famílias demandam moradia na área central da cidade.
Abraão revela que, nesta terça-feira, os integrantes dos movimentos também ocuparam um terreno na zona sul da capital paulista e realizaram manifestações em frente à Caixa Econômica Federal e à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Segundo o coordenador da União dos Movimentos de Moradia, os imóveis permanecerão ocupados até “conseguir uma resposta [por parte do Governo]”.
Abraão revela que em São Paulo existe uma pressão para as famílias pobres saírem da área central. “Os dois governos, tanto Prefeitura quanto Governo do Estado, querem que a população carente se afaste do Centro de São Paulo”, destaca.
Para isso, segundo ele, utilizam estratégias como “cheque-despejo”, que consiste em pagar uma indenização para as famílias se retirarem do local, ou “jogam as pessoas para a periferia da periferia”. “Eles até fazem [políticas habitacionais], mas fazem para outro setor, não para a população mais carente”, comenta.
Outras mobilizações
As ações pela reforma urbana não acontecem apenas em Brasília e São Paulo. De acordo com informações do Fórum, atos públicos e manifestações marcaram a terça-feira também em outras capitais, como Curitiba (PR), Maceió (AL), Teresina (PI) e Vitória (ES).
Mais informações em: http://www.forumreformaurbana.org.br/

Obra deverá prever custo da remoção de famílias

Brasília. O governo estuda a adoção de previsão orçamentária nos projetos de obras públicas em áreas urbanas para remoção das famílias. A informação foi dada ontem aos movimentos sociais durante reunião, no Planalto, com os ministros da Secretaria de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, e da Secretaria-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho.

O Planalto está analisando como isso poderá ser feito e quer que a medida atinja principalmente as obras para a Copa do Mundo de 2014. Para isso, a secretária nacional de Habitação do Ministério da Cidades, Inês Magalhães, apresentou na reunião uma minuta de portaria para regulamentar a realização das obras."Vamos trabalhar duro, vamos estabelecer padrões. Não há razão nenhuma para que uma pessoa seja mal tratada ao ser removida por uma obra pública. Nosso compromisso com vocês é agir com rigor, e a presidenta quer uma intervenção clara nossa sobre isso", disse Gilberto Carvalho para os representantes dos movimentos sociais.

Movimentos Sociais: aspectos históricos e conceituais


Paulo Afonso Barbosa de Brito 1











Um rápido olhar sobre o passado
A história brasileira é profundamente marcada pela efervescência dos Movimentos Sociais, embora só muito recentemente estes tenham aparecido com o lugar de destaque nas publicações e registros da história oficial. Faz-se necessário resgatar a dívida social e histórica que a nação tem com os empobrecidos e trabalhadores, enquanto se organizam e lutam por direitos, tanto para reconhecimento de sua participação na constituição da própria nação, quanto para o reconhecimento da pluralidade de sujeitos sociais presentes na dinâmica política nacional.

Só para partir de um marco de referência consistente, reconhecido por todos os estudiosos da história brasileira, registremos a existência dos Quilombos, uma vez que eles enfrentaram uma das dimensões mais perversas de nossa história, a existência de escravidão humana, de pessoas serem tidas apenas como mercadoria e trabalho, mas também registraram, com suas experiências, importantes lições de dedicação e luta pela emancipação social, política, econômica, cultural.

Os Quilombos foram, justamente expressões marcantes destas lutas, a organização de negros escravizados, que criavam vários mecanismos para fugirem dos engenhos onde viviam e trabalhavam, para construírem comunidades livres, atraindo também brancos pobres, indígenas, caboclos, motivados pela perspectiva de uma vida livre. Nestas comunidades, experimentavam uma organização da produção em certos casos muito desenvolvida, com técnicas agrícolas avançadas, artesanato, metalurgia, uma nova organização política, qualitativamente diferente da Colônia de Portugal, uma dinâmica social com princípios de liberdade e igualdade. Centenas de Quilombos se espalharam por todo o país durante os anos de Colônia e Império. O mais importante deles foi o Quilombo dos Palmares, situado em uma extensa faixa de terras entre os estados de Pernambuco e Alagoas, uma experiência que durou quase um século, e que foi destruído pelos governos e senhores de terras, através de uma das mais sangrentas guerras patrocinadas no período colonial brasileiro.

Outro movimento social, inspirado em valores liberais (de forte influência na Europa naquele período), mas formado, em grande parte, por setores minoritários das elites, como religiosos, advogados, poetas, foi o abolicionismo, que também teve papel importante para que a nação superasse esta terrível fase de sua história.

Entre o final do período Imperial e os primeiros anos da República, realizaram-se os chamados “Movimentos Messiânicos”, que eram movimentos em geral conduzidos por líderes religiosos, mas com forte apelo político, formados fundamentalmente por camponeses pobres, que tentaram as primeiras experiências de reforma agrária no Brasil. Entre estes, podemos destacar a experiência do Contestado no Paraná, de Canudos na Bahia, de Caldeirão no Ceará. Todas experiências brutalmente destruídas pelo poder da República, através de guerras sangrentas com verdadeiros genocídios tendo sido praticados.

Durante todo o século XX, possivelmente, o movimento sindical se expressou como a principal forma de organização entre os movimentos sociais, tendo assumido diferentes influências, como a dos anarquistas no início do século, dos trabalhistas e dos comunistas entre a década de 30 e o Golpe Militar de 1964, do novo sindicalismo (que veio a se consolidar na construção de Central Única dos Trabalhadores – CUT), a partir da década de 80.

Para esse texto, que visa oferecer subsídios para os debates do programa 1 desta série de programas, concentraremos nossa análise nos chamados novos movimentos sociais, que tiveram os primeiros ensaios nas décadas de 60 e 70, mas puderam se expressar com maior dinamicidade e mobilidade a partir da década de 80.
A atualidade dos Movimentos Sociais Populares


Principalmente na década de 80, os Movimentos Sociais Populares emergiram no contexto social e político brasileiro com uma fantástica capacidade criativa, organizativa e mobilizadora, sendo responsáveis por expressivas conquistas que garantem melhorias na qualidade de vida de amplos setores sociais, afirmação de direitos e exercício da cidadania para um número cada vez maior de agrupamentos humanos, construção de identidades coletivas e auto-estima pessoal e social de setores e grupos historicamente discriminados ou oprimidos, intervenção nas políticas públicas, modificando ou inibindo as seculares práticas assistencialistas e clientelistas, contribuindo assim para mudanças em nível do poder local e da política tradicional. Tais conquistas são permeadas por processos educativos, tanto dos participantes diretos de tais movimentos, quanto das pessoas e grupos atingidos por sua ação, e da sociedade envolvente.

Portanto, estamos considerando movimentos sociais os agrupamentos de pessoas, geralmente das classes populares ou de grupos minoritários (no sentido de destituídos de poder) e discriminados, que agem coletivamente, com algum método, realizam parcerias e alianças, abrem diálogos e negociações com interlocutores, como processos articulados para conquistas de direitos e exercício da cidadania. Multiplicaram-se no Brasil durante a década de 80 e principalmente nos anos 90, percebendo-se, no país, progressiva ampliação e diversificação de organizações populares, com diversos modelos organizativos, formas de mobilização, bandeiras de luta, relações com mediadores e interlocutores, processos de formação das lideranças populares.

Apesar de reconhecermos os riscos de qualquer tipologia, para efeito didático, apresentaremos a seguir alguns agrupamentos dos principais movimentos sociais em atividades no país, reconhecendo que esta é apenas uma aproximação metodológica e organizativa, não uma delimitação de fronteiras rígidas entre os diversos tipos de movimentos existentes. Assim podemos destacar:

* Associativismo Comunitário – várias redes de Associações Comunitárias ou de Moradores, Conselhos Populares, Sociedades de Amigos de Bairro, Associações Beneficentes, Comunidades de Base, espalhadas pela maioria dos municípios brasileiros;
* Movimentos Criados em torno de Necessidades Coletivas – os que têm demonstrado maior capacidade mobilizadora e organizativa no país, destacando-se os Movimentos de Luta pela Moradia, os Movimentos Populares de Saúde, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), responsáveis por importantes conquistas para as classes populares;
* Movimentos Criados em torno de Identidades Coletivas, ou para o enfrentamento de discriminações específicas – como os de mulheres, de negros, de portadores de necessidades especiais, de orientação sexual diferenciada, de idosos, que têm sido responsáveis pela mudança de valores e comportamentos na sociedade brasileira;
* Movimentos Indígenas – que têm garantido a sobrevivência e a cultura dos primeiros habitantes das terras brasileiras;
* Movimentos nascidos em torno de valores humanos e solidários de seus membros – como a Pastoral da Criança, a Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (que não se reconhece como um movimento, mas como uma ação articulada), e que têm tido uma incidência extraordinária para melhorar a vida das pessoas;
* Movimentos de Juventude e de Crianças e Adolescentes – desde os tradicionais, como o Movimento Estudantil e as Pastorais Juvenis, até os novos movimentos e expressões juvenis das periferias urbanas, fortemente marcados pelas iniciativas culturais e comunitárias;

• Movimentos ligados ao mundo do trabalho, à produção e distribuição de renda – diversos grupos que se articulam em torno da chamada “Economia Popular e Solidária”.

Consolidaram-se também, neste período, vários movimentos e organismos de inspiração religiosa, pastorais sociais, bem como os Centros de Educação Popular e as Organizações Não-Governamentais (ONGs). Nos últimos anos, tem crescido a articulação destes Movimentos, Entidades, Pastorais, ONGs em torno de Redes, Fóruns e outras expressões de comunicação permanente, com destaque para o Fórum Social Mundial, e os diversos Fóruns Sociais nascidos em sua conseqüência.

Esta rápida apresentação, quase em forma telegráfica, do que existe atualmente de movimentos organizados no país, quer valorizar o conjunto dos movimentos e organizações existentes, e evitar o risco de separação entre os movimentos de reivindicação e os movimentos identitários, ou entre os da sobrevivência e os da cidadania. Estamos optando por uma apresentação didática sucinta, pois não concordamos com a dicotomia criada entre identidade e estratégia, ou entre existência e cidadania. Consideramos que há um continuum ou uma articulação entre estas dimensões. Neste sentido, consideramos importante a ação de tais movimentos, que vai desde a indicação de representantes para participação nos Conselhos setoriais de proposição e gestão de políticas públicas, nas Conferências de definição de políticas, as passeatas e ocupações de terras rurais e urbanas, até as campanhas de amamentação, de uso do “soro caseiro”, da fabricação comunitária de complemento alimentar de alto teor nutricional, ou outras pequenas iniciativas populares capazes de ter incidência na diminuição da mortalidade infantil, ou seja, uma série de distintas iniciativas que dialogam de forma diferenciada, mas complementar, com resultados para melhorar a qualidade de vida das pessoas e o seu modo de vida.

O importante neste momento é registrar que, embora estas expressões organizativas mobilizem, a cada vez, grupos específicos, levantem, a cada vez, bandeiras bem definidas, apresentem, a cada vez, formas diversas de mobilização, elas têm conseguido consistência cada vez maior, construindo teias de articulação às vezes invisíveis e redes de comunicação e solidariedade responsáveis por importantes conquistas. Entre estas podemos destacar:

* Melhorias nas condições de existência e mesmo garantia de sobrevivência de expressivos grupos populares no país. Muita gente tem acesso à terra para trabalhar, à casa para morar, à água para beber e para a higiene doméstica, a serviços públicos de saúde, de educação, de atendimento à criança, aos adolescente, aos idosos, aos portadores de deficiência, porque o povo se mobilizou através de seus movimentos organizados;
* Auto-estima pessoal e solidariedade social – pessoas que passaram a se valorizar mais, a se amar mais, a defender sua dignidade humana, a partir de sua participação em alguma forma de organização popular;
* Consciência de direitos e exercício da cidadania – as descobertas tratadas no item anterior contribuem para muitos grupos populares romperem os círculos de dominação, em que os direitos são recebidos como dádivas do político de plantão, para perceber que o atendimento de necessidades sociais básicas é um direito antes negado e agora reconquistado pela própria luta popular;
* Mudanças no poder local e deslocamentos na política tradicional, como sinal do avanço do exercício da cidadania e a afirmação de novos instrumentos de ação pública, reconhecidos como democracia participativa – a participação em Conselhos de Gestão em políticas públicas, eleição de parlamentares oriundos de processos e formação na luta popular, constituição de grupos de produção ou grupos de “economia solidária”, campos ou situações historicamente altamente controlados pelas elites locais, que passam a incorporar novos atores, e a abrir novos campos de batalha.
Conceitos e categorias analíticas dos Movimentos Sociais

Destacamos, neste texto, a experiência dos Movimentos Sociais Populares, com todos o significados anteriormente explicitados, não só no Brasil, mas em todo o mundo. E o Fórum Social Mundial (que não é composto só por Movimentos Sociais, mas tem importante participação destes) é a expressão mais visível deste significado, e se incorpora como objeto de estudo das ciências humanas e sociais, projetando-se, em seguida, como um novo paradigma, devido à grande importância prática e analítica que atingiu, tanto na sua concepção empírico-analítica, quanto na sua dimensão de categoria teórica.

Pelas razões apresentadas até aqui, em torno da concepção e das práticas dos movimentos sociais, nossa perspectiva teórica assume um distanciamento dos esquemas utilitaristas e das teorias baseadas na lógica racional. E, ao fazer o diálogo com a teoria dos novos movimentos sociais, assumimos esquemas interpretativos, que enfatizam o cotidiano, a cultura, a ideologia, as lutas sociais, a solidariedade entre pessoas e grupos, os processos de construção de identidades coletivas e de vivências de subjetividades.

Os conceitos que pretendam captar a dinamicidade dos novos movimentos sociais precisam inovar, rompendo com esquemas rigidamente predeterminados, priorizando dimensões mais da ação que de estruturas, mais de movimento que de classe estruturalmente dada, mais de simbólico-cotidiano que de racionalidade proletária. Daí que se reforça a necessidade da análise a partir das subjetividades e identidades, bem como dos imaginários e dos sistemas simbólicos que permeiam suas práticas e dinâmica de funcionamento.

Mas, se faz necessário enfatizar, a centralidade da ação social como ação política, portanto como construção de força social-política, tem um valor em si mesma através do vínculo social, e um valor universal, contribuindo para os processos de consolidação da democracia participativa.

A experiência brasileira, tanto na peculiaridade dos movimentos sociais, que têm em seu interior forte hegemonia da parcela conhecida como movimentos populares (aquelas organizações e lutas mais diretamente vinculadas às classes populares, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, o Movimento Nacional de Luta por Moradia – MNLM, o Movimento Popular de Saúde – MOPS, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais – MMTR), quanto no “ineditismo” de experiência da democracia participativa 2 , reforça tal opção teórica e metodológica. Esta opção incorpora outros conceitos ou categorias de análise, dentre os quais podemos destacar:

• Movimentos Sociais como expressão dos Conflitos na Sociedade – a parte mais visível destes conflitos está em torno dos direitos de propriedade, uma vez que as lutas por terra, por moradia, por água, enfrentam-se com a tradição de concentração das terras e das riquezas, tão fortemente presentes na história brasileira. Mas também os conflitos de valores, como os presentes nas relações de gênero, de raça, de gerações.

• Movimentos Sociais implicam Ações Coletivas – Trata-se de ações de grupos, Associações, Comunidades, motivados por demandas sociais, situações de carências, ou por valores humanitários e libertários, articulados em torno de um discurso, uma linguagem comum. As ações coletivas tornam mais provável o atendimento das reivindicações, ou a afirmação dos valores.

• Afirmação de Identidades e Solidariedades - As pessoas participam de aspirações e sonhos comuns, às vezes em busca de bens materiais imediatos e necessários à sua sobrevivência, às vezes de bens simbólicos, mas igualmente necessários à manutenção da vida, e em torno destes bens constroem identidades e vivenciam solidariedades.

• Relação dialética permanente entre Integração, Inclusão e Mudança Social – Se a grande maioria das demandas dos movimentos sociais diz respeito à inclusão e à integração das pessoas ao sistema, uma vez que o sucesso do próprio sistema, que cria a exclusão, demonstra a capacidade de também incluir, e o processo de tal conquista tem criado as condições para mudanças e transformação da ordem social existente, o que já é percebido em várias situações.

• As ações coletivas articulam Pluralismo e hegemonia – Embora os espaços coletivos sejam ocupados e valorizados como o ambiente de todos, portanto da pluralidade de idéias, de opções políticas, de credos religiosos, a existência da organização se configura também como espaços onde se consolidam direções, se constroem decisões majoritárias, o que necessariamente apresenta os movimentos como ambientes de disputas. Mas, para além das disputas internas, os movimentos expressam disputas gerais que existem na sociedade, num exercício muitas vezes difícil de construir acordos entre os seus participantes, e entre os diversos movimentos, para os enfrentamentos externos, os conflitos estruturais presentes na sociedade e nas relações de poder e de propriedade.

Notas

Sociólogo e educador da Escola de Formação Quilombo dos Palmares – EQUIP, Recife- PE. Consultor dessa série. Texto escrito para o programa “Salto para o Futuro”.
2 Os argumentos em torno do “ineditismo da experiência brasileira” são apresentados por Rubens Pinto Lira, em: Textos de teoria política . João Pessoa, PB: UFPB/FUNAPE, 1989.

SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO

NÃO A PROPRIEDADE PRIVADA VIVA A COLETIVIDADE

Introdução

A idéia de direito de propriedade, como é sabido, vem mudando com o desenrolar da história. Hoje em dia, é inviável a visão desse direito de forma absoluta e individualista, de modo que o proprietário não mais pode utilizar o seu bem egoística e indiscriminadamente. A noção liberal da propriedade, que atende aos anseios da burguesia, vitoriosa na Revolução Francesa, e que foi consagrada pelo Código Napoleônico, não consegue mais atender aos anseios sociais do século XXI.

Contudo, forçoso reconhecer-se que o processo de modificação dessas premissas foi longo, fruto da própria evolução da sociedade. É importante o estudo do modo como ocorreu essa mudança, para então entendermos as razões que ensejaram o estágio atual em que nos encontramos no tocante à normatização do direito em relevo.
Atualmente, a problemática da efetivação do princípio da função social é um desafio a ser enfrentado, porquanto a mera inclusão desse princípio no texto constitucional, como se uma norma programática sem nenhuma eficácia fosse, não atenderia às necessidades coletivas postas em evidência.

1. Evolução Histórica
O princípio da função social da propriedade foi pela primeira vez mencionado no ordenamento jurídico pátrio na Constituição Federal de 1967. Com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, a Carta de 1967 inclui a função social da propriedade como princípio basilar da ordem econômica e social (art. 160, III), coexistente com a garantia da propriedade privada. Alguns chegam a encarar esse princípio como uma verdadeira hipoteca social sobre a propriedade.
Deve-se abandonar o ponto de vista romano da propriedade e adotar-se uma concepção finalista, de modo a adequar o instituto às atuais necessidades sociais. [01] 
Do ponto de vista histórico, a idéia de função social foi primeiramente trabalhada por São Tomás de Aquino, portanto guardando relação com a doutrina cristã da Idade Média. Algum tempo depois, o jusnaturalismo encarou esse princípio como uma necessidade da utilização dos bens como instrumento da efetivação da justiça divina.
Na sociedade liberal do século XIX, a propriedade foi instrumento de afirmação da inteligência e liberdade humana. O homem era livre para contratar e adquirir bens. Podia ser averiguada a supremacia do individualismo, sendo que o acúmulo de riquezas era sinônimo de poder e sucesso. Esquecia-se de que havia um grande contingente populacional à margem dessas possibilidades.
Foi nesse ambiente que a noção de função social da propriedade surgiu, originalmente, como reação ao abuso de direito. A jurisprudência francesa, em meados do século XIX, foi a responsável por essa construção jurídica. Tal hipótese era verificada na prática tendo em vista a concepção objetiva, pois era necessária a presença de três elementos: a intenção de prejudicar outro sujeito, a ação culposa ou negligente e a inexistência de um interesse sério e legítimo do agente. O aludido abuso de direito podia restar configurado não apenas na maneira como o proprietário usava o seu bem, mas também pelo modo como ele o alienava, ou seja, guardava relação com o direito de dispor. Essa teoria, como pode ser constatado, tornou-se insuficiente para atender às necessidades coletivas com o transcorrer dos anos, porque trazia como elemento necessário para o não-cumprimento da função social a intenção do proprietário de causar prejuízo a terceiros. Mas é sabido que o proprietário, ao agir de maneira egoística em relação a sua propriedade, não tem a intenção norteadora de prejudicar alguém, mas, sim, de beneficiar apenas a si próprio, o que implica o prejuízo da sociedade de maneira indireta. O conceito de função social evoluiu de tal maneira que nos dias atuais é segura a afirmação de que é possível o descumprimento da função social sem a necessidade da ocorrência do abuso do direito. [02] 
No momento histórico do final do século XIX, o marxismo fez severas críticas ao modelo de propriedade vigente, sustentando que ele era mobilizador de riqueza e representava o ideal capitalista de supremacia do capital sobre o trabalho. Ainda hoje, aliás, alguns doutrinadores, muitos com um revés comunista, vinculam o princípio da função social ao socialismo equivocadamente. Tal associação não procede, visto que a propriedade continua sendo privada, sendo tutelada e garantida pela função social, que legitima o título adquirido. Permanece sendo exclusiva e de livre transmissibilidade. Aliás, o grande empresário que garante ao seu bem altos graus de produtividade estará dando a ele a devida destinação social. Deve o proprietário exercer seu direito de modo a realizar o interesse social, sem, entretanto, eliminar o domínio privado sobre o bem, sendo-lhe asseguradas as faculdades do uso, gozo e disposição. [03] 
O que se observa é uma mudança da postura liberal adotada pelo Estado, que após a primeira guerra mundial passou a intervir mais na economia, deixando de ser mero regulador. O objetivo dessa atitude mais participativa era diminuir as gritantes desigualdades sociais, buscando melhorar a vida dos marginalizados. [04] 
Leon Duguit teve grande importância na elaboração da idéia atual de função social, muito porque era defensor da idéia de que os direitos se justificam apenas quando têm como escopo contribuir para uma missão social. A sua conceituação de função social tornou-se clássica:
A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza social utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que deve se modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. [05] 
A Igreja Católica foi, sem dúvida, uma das grandes inspiradoras para a propagação dessa nova visão. Desde os estudos de São Tomás de Aquino, na Idade Média, a doutrina cristã tem essa preocupação. É o que pode ser compreendido após a leitura das encíclicas Mater et Magistra, do Papa João XXIII, do ano de 1961, e Centesimus Cennus, do Papa João Paulo II, datada de 1991, entre outras, nas quais a propriedade é encarada como um meio de instrumentalizar a subsistência da humanidade. É defendido que o exercício do direito de propriedade deve se dar de modo mais solidário e em prol do coletivo. [06] 
Na Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, era pregado que: "Os que têm recebido de Deus maior abundância de bens, sejam corporais ou externos, sejam internos ou espirituais, os receberam para que com eles atendem a sua própria perfeição e, ao mesmo tempo, como ministros da Divina Providência, ao proveito dos demais. [07]"
A Encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII, ao seu turno, que trouxe grandes inovações na doutrina social da Igreja Católica, ensina que: "[...] O direito à propriedade privada é intrinsicamente inerente à função social. [08]"
No mesmo diapasão, a Encíclica Populorum Progressio, do mesmo Papa, traz a seguinte lição:
[...] A propriedade não constitui um direito incondicional e absoluto. Não há qualquer razão para reservar-se ao uso exclusivo o que supera à própria necessidade, quando aos demais falta o necessário. Em uma palavra: o direito à propriedade não deve jamais exercitar-se em detrimento da utilidade comum. [09] 
No mesmo texto, em caráter mais rígido, é proclamado que: "Se alguém tem bens deste mundo, e vendo um irmão em necessidade e não o atende, como é possível que ele resida no amor de Deus? [10]" 

2. Conceituação do Princípio da Função Social da Propriedade
Assim, a preocupação em dar à propriedade, mesmo que privada, uma destinação mais vinculada ao benefício coletivo não se faz presente apenas em relação à produtividade, embora seja inegável que a economia tem papel fundamental na busca de uma existência mais digna para todos. Recentemente, a moradia vem sendo uma grande preocupação. A má distribuição das terras gera injustiça e, conseqüentemente, violência no seio da comunidade. Deve haver, por isso, maior solidariedade no uso das coisas materiais. Trata-se de uma salutar reação do ordenamento contra o desperdício de potencialidade para satisfazer as necessidades humanas, materiais e pessoais. 
O conceito do princípio em testilha, portanto, é relativo e flexível, podendo variar de acordo com a doutrina e o sistema positivo de cada época e região. O direito de propriedade pode ser compreendido sob dois aspectos: um estrutural, e outro funcional, sendo que a doutrina, via de regra, dá mais atenção ao primeiro.
Os poderes do proprietário de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la contra quem a possua injustamente, compõem a estrutura do direito. Dessa estrutura pode ser extraído um elemento econômico, ou interno, e outro jurídico, ou externo. O elemento econômico está ligado às faculdades de usar, gozar e dispor, pois é por intermédio delas que o proprietário obtém vantagens econômicas. Ao seu turno, o elemento jurídico seria a exclusão das ingerências alheias, ou seja, os meios de defesa concedidos pelo ordenamento jurídico para tutelar o proprietário contra ataques externos indevidos. [11] Nesse tocante, o direito é oponível erga omnes, pois é sabido que toda a coletividade deve sempre respeitar a propriedade alheia. A soma desses dois elementos resulta na estrutura do direito de propriedade.
O aspecto funcional é a ideologia inerente, o aspecto dinâmico da propriedade. É o papel que ela desempenha em uma determinada sociedade, operando no mundo concreto. Ela sempre exerceu uma função na sociedade, seja para demonstrar claramente a supremacia do capital sobre o trabalho na época liberal, seja para servir de instrumento para uma sociedade mais justa e igualitária, como hoje, no Estado Social. Quando o ordenamento reconheceu que esse direito deve proteger o interesse coletivo, e não o individual, a função da propriedade tornou-se social. [12]
A partir de então, a titularidade da situação proprietária passa a impor ao seu titular o respeito às situações não-proprietárias. Hoje a propriedade é caracterizada menos pelo seu conteúdo estrutural e mais pela finalidade econômica e social do bem sobre a qual incide. A função social, portanto, incide sobre o conteúdo e conceito do direito de propriedade. Sobre essa questão, entretanto, cabe ser frisado que parte considerável da doutrina entende que o princípio da função social não interfere na substância do direito, mas apenas no seu exercício. Pela explanação já feita, fica clara nossa discordância, pois acreditamos que a função social incide na substância do direito, sendo inviável conceituar o direito de propriedade, nos dias de hoje, sem mencioná-la. Caso contrário, estaríamos tratando de mera limitação.
Deve haver compatibilização da situação jurídica de propriedade com situações não-proprietárias, sendo que estas, na hipótese de conflito, receberam da sistemática constitucional uma situação de vantagem. Chegaram a ser encarados pela doutrina como contra-direitos, mas merecedores de tutela. É o caso dos interesses difusos, como a questão do meio ambiente. Hoje em dia, esses contra-direitos são protegidos pela Carta Fundamental, estando inclusive em situação de vantagem, visto que são princípios do ordenamento. Para alguns autores, a expressão contra-direito pode ser entendida, em sentido diverso ao da idéia mais antiga, como os direitos das pessoas menos favorecidas ou de toda a sociedade, como é caso do direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, por exemplo, não sendo protegidos apenas no momento da violação. [13] 
No ordenamento jurídico pátrio, a Constituição Federal de 1988 provocou essa profunda alteração da visão do direito de propriedade. Antes de analisarmos o modo como foi feita essa operação, faz-se necessário um breve histórico do direito de propriedade em nossos sistemas constitucionais, para assim ser entendido o motivo pelo qual chegamos ao atual estágio.

3. Tratamento Concedido pelas Constituições Brasileiras Anteriores
A Constituição Federal de 1824, que foi a primeira do Brasil independente, ainda na época do Império, incluiu o direito de propriedade no rol dos direitos individuais, em seu artigo 179. Era um direito absoluto, podendo ser excepcionado apenas pela desapropriação, que tinha como requisito básico a indenização em dinheiro. Cabe ressaltar que o poder de desapropriar não está vinculado à função social, visto que a força expropriatória pode incidir mesmo sobre bens cumpridores da função social, desde que haja indenização prévia, justa e em dinheiro. A desapropriação não possui a natureza jurídica de sanção, mas é o exercício de um poder estatal em razão da necessidade pública. É mera limitação pública ao direito de propriedade, possibilitando a transferência compulsória de um bem para o patrimônio público. A função social supera a questão do poder expropriante, pois está ligada à estrutura do direito de propriedade, influenciando seu conceito, exercício e tutela.
Em nada inovou a Carta Política de 1891, que inaugurou a República em nosso país. A propriedade continuava sendo um direito absoluto, nos mesmos moldes do Código Napoleônico. O artigo 72, § 17, que enfrentava a questão, era resultado das conveniências políticas da época, visto que a economia nacional estava amparada na agricultura do café. Não era de interesse dos latifundiários uma noção mais social do direito de propriedade, obviamente.
A Constituição Federal de 1934, por sua vez, trouxe inovações nessa seara ao afirmar no artigo 113, 17, que o direito de propriedade não podia ser exercido de forma contrária ao interesse social ou coletivo. Não foi eficaz na tutela de interesses não-proprietários, uma vez que a lei complementar necessária para a regulamentação nunca foi editada. Mesmo assim, foi salutar a influência exercida pelas constituições mexicana (1917) e alemã (1919). [14] 
Esse texto constitucional teve vida curta, porque já em 1937 foi promulgada uma nova Constituição, que representou verdadeiro retrocesso. No art. 122, 14, não foi proibido o exercício contrário aos interesses sociais e coletivos, embora tenha sido reconhecido o caráter não-absoluto desse direito. 
O cunho social característico da Lei Maior de 1946 não poderia ter deixado de influenciar o direito à propriedade. O art. 141 garantia o direito como inviolável, salvo hipótese de desapropriação. O art. 147, ao seu turno, trouxe mudança substancial, pois inaugurou em nosso ordenamento o condicionamento do exercício do direito de propriedade ao bem-estar social, permitindo a justa distribuição da propriedade. As relações sociais existentes continuaram injustas para os menos afortunados, porém em virtude do conservadorismo dos operadores do direito e da inércia da classe política em normatizar o dispositivo constitucional, como ocorre até hoje. Como geralmente acontece no Brasil, infelizmente, o referido dispositivo tornou-se norma programática de aplicação limitada, visto que nesse país os direitos sociais dificilmente saem do papel. [15]
Já sob a vigência do malfadado regime militar, foi outorgada ao povo brasileiro a Constituição Federal de 1967, que foi profundamente modificada pela Emenda Constitucional de 1969. Na redação, pela primeira vez foi usado o termo função social para dispor acerca da necessária coexistência entre os interesses do proprietário e da sociedade. Assim era disposto nos artigos 157, III e 160, III. Entretanto, gize-se que era princípio da ordem econômica e social apenas, não sendo elevado ao nível de garantia fundamental do cidadão, como fez o atual texto constitucional, o que acarreta vital diferença. Cumpre consignar, entretanto, que durante a vigência da Constituição de 1967 o referido princípio era aplicado exclusivamente à propriedade privada.

4. Normatização Conferida pela Constituição Federal de 1988
A Carta Federal de 1988 inclui a função social da propriedade como princípio da ordem econômica e social, no art. 170, III, como fizeram as duas últimas constituições. Mas fez mais que isso: assegurou a função social no âmbito dos direitos e garantias fundamentais do cidadão no art. 5º, XXIII. Isso significa que a função social foi encarada pelo constituinte como princípio próprio e autônomo, apto a instrumentalizar todo o tecido constitucional, e, por via de conseqüência, todo o ordenamento infraconstitucional. O direito de propriedade é garantido, desde que cumprida a sua função social. É tratado, ao mesmo tempo, como direito individual fundamental e de interesse público, visando a atender os anseios sociais.
Houve, como pode ser visto, uma acomodação de direitos, visto que o art. 5º tanto faz referência ao direito individual da propriedade, no inciso XXII, como à função social, logo adiante, no inciso seguinte. Não houve uma clara solução do problema, sendo viável a aplicação do princípio da proporcionalidade, em cada caso concreto, para dirimir essa questão. [16] 
A dignidade da pessoa é regra basilar, influenciando o conteúdo da função social. Pela sistemática, cumprirá a função social a propriedade que, respeitando a dignidade humana, contribua para o desenvolvimento nacional, para a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais. Os parâmetros para tanto são concretos, ao contrário do que possa parecer.
No tocante à propriedade rural, o art. 186 da Carta Constitucional estabelece as condições necessárias para o alcance da função social, devendo ser atendidos, simultaneamente, os seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Não basta, entretanto, ser extremamente produtiva se a produção estiver baseada, por exemplo, no trabalho escravo ou na exploração predatória do meio ambiente. [17] Em razão disso, é infeliz a disposição do art. 185 que torna a propriedade produtiva insuscetível à desapropriação sancionatória, mesmo que descumpridora de sua função social. Segundo a leitura conjunta dos dispositivos constitucionais, não adianta haver uma produtividade com custo social indesejável. É sabido, no entanto, que a redação de tal dispositivo resultou de uma grande pressão política da bancada rural presente na Assembléia Nacional Constituinte, visto que os latifundiários tinham, na época e ainda hoje, uma grande e eficaz representação.
Mas há quem defenda o contrário, ou seja, que a propriedade descumpridora da função social, mesmo que produtiva, pode ser desapropriada mediante o pagamento com títulos, sendo desnecessária a indenização prévia e em dinheiro. Segundo essa posição, a Constituição deve ser interpretada de forma sistemática, e não fragmentada. O princípio da função social deve instrumentalizar todo o tecido constitucional, funcionando como verdadeiro parâmetro interpretativo. A Constituição de 1988 optou por prestigiar os valores existenciais condizentes com a dignidade da pessoa humana, deixando em segundo plano o individualismo. Conseqüentemente, os valores patrimoniais passaram a figuram em menor escala. [18] 
Em razão disso, não é viável o entendimento no sentido de que a propriedade produtiva, mesmo que embasada no trabalho escravo ou na exploração degradante do meio ambiente, não possa ser expropriada com caráter sancionatório em virtude de um dispositivo constitucional que não está em harmonia com o sistema do qual faz parte. [19]
Em sentido oposto, pugnando pela interpretação literal da norma, está o respeitado José Afonso da Silva. [20] 
Qualquer interpretação contraditória dos princípios constitucionais informativos representa violação aos fundamentos objetivos da República brasileira. Não se constrói uma sociedade justa e solidária, erradicadora da pobreza e promovedora do bem comum com soluções patrimonialistas, desprovidas de escrúpulos com as garantias existenciais asseguradas pela Lei Maior. 
No mesmo diapasão, está o entendimento de Gustavo Tepedino. [21] Segundo esse autor, deveria o artigo 185 ser compreendido em harmonia com os artigos 1º, 3º, 5º, XXII, XXIII, 170, II, III, 184, e 186 da Carta Fundamental.
Superada essa questão, pode ser afirmado que se não atender a todos esses requisitos, fica o titular da coisa sujeito à expropriação para fins de reforma agrária, prevista no art. 184 do Texto Constitucional. Essa é uma das hipóteses da chamada desapropriação-sanção, que se condiciona para que seja efetivada ao não-cumprimento da função social, sendo o pagamento da indenização, nessa hipótese, por meio de títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos. O expropriado não recebe, portanto, anteriormente à desapropriação a integralidade da reparação, sendo questionável a anterioridade desta. Essa matéria é regulada pela Lei n.º 8.629/1993 e pela Lei Complementar n.º 76/1993, alterada em alguns aspectos pela Lei Complementar n.º 88/1996.
Mas há casos diferenciados, que merecem uma especial atenção do aplicador do direito. O referido art. 186 da Carta Federal alude que existem algumas condições que devem ser cumpridas, simultaneamente, para que a propriedade cumpra sua função social. Em algumas situações, no entanto, um requisito acaba excluindo o outro, de modo a ser impossível o cumprimento instantâneo de todos. É o caso do conflito por vezes existente entre proteção do meio-ambiente e produtividade, pois, em regra, ambos os valores devem ser atingidos para que a propriedade exerça o papel esperado pela comunidade. No entanto, algumas vezes a preservação atinente a determinada área é de tal natureza e importância que se torna inviável, e mesmo impossível, a produtividade, ao menos sob o enfoque econômico, no local. 
Tal situação acontece, por exemplo, em uma área de floresta de araucárias, cuja preservação integral é de total interesse, e mesmo necessidade, da coletividade. Nessa região, especificamente, não será suportável qualquer atividade econômica que venha a torná-la produtiva. Dessa forma, para que essa propriedade cumpra com sua função social, o exercício do direito de propriedade não poderá ter como objetivo a produção, visto que a vegetação constituída sobre ela deverá ser integralmente preservada. A aplicação do texto legal, nesse passo, não é absoluta, devendo o intérprete ter sempre em vista a real intenção do legislador ao elaborar determinada norma. Isso feito, terá o princípio da função social a devida e ambicionada aplicação concreta.
Ao tratar da propriedade urbana, no art. 182, §2º, é ponderado que ela "cumpre com sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor", sendo que este deve ser feito, impreterivelmente, nas cidades com população superior a vinte mil habitantes, sendo considerado o instrumento básico da política urbana.
O § 4º do referido dispositivo constitucional possibilita ao Município exigir do particular que este utilize a sua propriedade de maneira condizente com o princípio da função social, sob pena de sobre ele recair, no caso da não-verificação do correto aproveitamento:
I - parcelamento ou edificação compulsório;
II - imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Gize-se que a desapropriação-sanção, prevista no inciso III, só pode ser realizada, ao menos nessa situação de propriedade urbana, se as duas hipóteses anteriores não surtirem efeitos. Caso contrário, é vedada à Administração a utilização desse expediente. 
A Lei n.º 10.257, de 10.07.01 (Estatuto da Cidade), regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e disciplina as diretrizes gerais da política urbana.
A função social da propriedade urbana é atingida quando cumpridos os requisitos considerados essenciais pelo Plano Diretor. Por essa razão, a definição de função social tem uma margem de variabilidade entre uma cidade e outra, ou mesmo de uma zona para outra do município, devendo ser levados em consideração os problemas e as necessidades de cada região. A situação particular de cada cidade irá influenciar a elaboração do Plano Diretor. [22] 
Segundo lição de Elida Séguin, pode-se dizer, de maneira geral, que a função social da cidade compreende:
[...] o direito da população a uma moradia digna, transporte coletivo em número suficiente e com periodicidade compatível com a demanda, saneamento básico, água potável, serviço de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento de alimentos e bens, iluminação pública, saúde pública, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural, com especial enfoque para o entorno. [23] 
A questão do meio ambiente recebeu especial atenção do Estatuto da Cidade. O incentivo à arborização da área urbana é um meio extremamente eficaz na promoção de uma melhor qualidade de vida da população, sendo que esse procedimento é uma forma de mitigar a impermeabilização do solo urbano, bem como de diminuir o efeito das altas temperaturas e da poluição sonora, segundo os biólogos. A fixação de um índice que correlacione a necessidade de área verde por habitante em cada metro quadrado colabora para a implementação dessa idéia. Um meio ambiente equilibrado, e arborizado, contribui para a diminuir sensações negativas ligadas ao mundo moderno, como medo, stress e ansiedade, gerando no homem um sentimento de paz e tranqüilidade. [24]
A aplicação do princípio da função social da propriedade foi restringida pela Lei Maior, ficando delimitada, na área urbana, pelo aproveitamento preceituado pelo Plano Diretor e, no campo rural, à adequada utilização e justa distribuição das terras, no intuito de promover o bem-estar social. A conseqüência é que quando uma determinada propriedade não atende à função social, ela não pode ser tutelada pelo ordenamento jurídico. [25] 
Em relação ao campo, merece ser frisado que a desapropriação é um instrumento usado pela Administração Pública para garantir o acesso ao principal meio de produção, a terra, àqueles que têm o conhecimento para cultivá-la, mas que não têm a condição econômica de dela ser proprietário. Para evitar o abuso dessa concessão, o art. 189 da Constituição impõe que "os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão os títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos".
A função social representa um freio na conduta anti-social em relação à propriedade, mas não retira todo o seu exercício. Representa, isso sim, uma reação contra os desperdícios de potencialidade. O proprietário continua com as prerrogativas de usar, gozar, fruir, dispor e reivindicar a coisa. Ainda é o dono, embora esteja permanentemente submetido ao controle social sobre o seu comportamento enquanto detentor do senhorio sobre a coisa. A propriedade, como já foi afirmado, continua sendo privada, sendo a função social, que não pode ser contrária ao direito mínimo, um instrumento de garantia dela, visto ser inviável qualquer tentativa de socialização sem prévia e justa indenização. 
O exercício do direito de propriedade sempre sofreu limitações, deixando há muito tempo de ser absoluto. Os direitos de vizinhança, os direitos reais sobre a coisa alheia e o poder de polícia são exemplos desses limites impostos. Tais restrições não se confundem com a função social, visto que esta incide no conteúdo do direito [26], fazendo parte da estrutura, portanto. O limite sacrifica a extensão do direito em razão de interesse público ou privado, tendo noção negativa, ao contrário da função social, que pode impor ao proprietário obrigações positivas, como a obrigação de fazer. O limite, por conseguinte, não está apto a promover os valores fundamentais do ordenamento, que é a missão da função social. Esta, assim, acaba assumindo papel promocional. 
Nesse diapasão, assim se manifestou Eros Roberto Grau: "O princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o conceito jurídico-positivo de propriedade (destas propriedades), de modo a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade. [27]" 
Outra diferença importante é que as limitações atingem o exercício do direito, e não a substância. A função social atinge a essência do direito, modificando seu conteúdo, e é a razão pela qual o ordenamento tutela e garante o domínio, mas não chega a ser o motivo pelo qual o direito é atribuído ao titular, uma vez que, inegavelmente, o principal objetivo do proprietário, em regra, é satisfazer seus interesses particulares. Defender o contrário nesse aspecto chegaria a ser ingenuidade. Assim, a função social legitima e justifica as intervenções legislativas, que devem ser submetidas ao exame de constitucionalidade. 
A atribuição de poderes não é mais plena, sendo vedado ao proprietário exercer os direitos inerentes a sua condição de modo egoístico e inescrupuloso. Também não se dá, portanto, em caráter negativo, sendo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria possibilidade de efetuar suas atividades de senhorio sobre o bem. Tampouco se trata de ônus, pois a propriedade deve ser usada de maneira normal, cumprindo o fim para o qual se destina. A propriedade rural deve ser produtiva pela natureza lógica de sua destinação, que deve visar à produção, e não à especulação. Se o titular do bem age com desídia, não o utilizando nos conformes de sua potencialidade, deve sofrer as cominações legais para que a propriedade seja colocada em seu caminho normal.
Ainda nessa linha de idéias, costumeiramente é feita uma diferenciação entre a propriedade que tem uma função social e a propriedade que é uma função social. [28] A segunda é atribuída a alguém no interesse coletivo, encerrando deveres, obrigações e ônus, ao passo que a primeira permanece como situação subjetiva do interesse particular, que ocasionalmente é investido na função social. 
Pelo exposto, pode ser afirmado que a propriedade, portanto, não se restringe apenas a uma relação entre sujeito e objeto, situação típica da idéia de direito real absoluto. Há, agora, um compromisso perante toda a coletividade. Por essa razão, é defendido por alguns que a propriedade deixou de ser apenas um direito real.
Os destinatários da função social seriam o titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz.
Para o titular do direito ela assume o papel de princípio geral. A partir de então o titular não mais possui o livre arbítrio, uma vez que não pode perseguir fins anti-sociais. Para ser merecedor da tutela do sistema, deve proceder de acordo com o motivo pelo qual o direito lhe foi outorgado, que é a promoção dos valores fundamentais da República elencados pelo texto constitucional.
Já o legislador tem o dever de não conceder ao titular do direito poderes contraditórios à função social, mas sim os necessários para perseguir os objetivos constitucionais. 
O juiz, por sua vez, está vinculado ao princípio no aspecto interpretativo da norma, assim como os demais operadores do direito, não sendo viável a aplicação de preceitos normativos incompatíveis. Da mesma forma, deve o princípio ser utilizado para suprir lacunas legais, visto que ele tem alcance geral. Deve ficar bem claro, no entanto, que não deve ocorrer o uso indiscriminado do princípio, além de seu alcance, visto que a sociedade não precisa nem anseia por um direito alternativo, tampouco resistência injustificável em aplicá-lo, configurando miopia jurídica, uma vez que o princípio tem normatividade. [29] Esse problema se transferiu da esfera normativa para a intelectual, pois alguns ainda não conseguiram se desvincular da noção história, e ultrapassada, do direito de propriedade visto de maneira absoluta e intangível, nos moldes romanos e napoleônicos. Daí a crise nessa seara do Direito Civil.
Nesse ponto, não pode o intérprete escolher o caminho mais cômodo da noção do direito de propriedade anterior ao advento da atual Carta Fundamental. É impossível interromper a história e ignorar os fatos sociais que se sucederam. [30] 
Outra discussão diz respeito à incidência do princípio da função social, pois alguns defendem que ele recai sobre todos os bens, ao passo que outros aduzem que ele incide apenas sobre os bens de produção, e não sobre os bens de consumo, utilizando critérios econômicos para tanto. Eros Roberto Grau [31] e Fábio Konder Comparato [32] são dois autores que se filiam à segunda corrente, ou seja, entendem que a função social apenas tem aplicação aos bens de produção, sob o argumento de que a utilidade dos bens de consumo é esgotada na própria fruição. Esses bens têm função restrita à subsistência individual ou familiar, sem maiores conseqüências sociais. 
Guardada a devida vênia aos respeitados juristas, não concordamos com essa linha de pensamento. O fato de o bem ser utilizado para subsistência individual não o exclui da incidência da função social, visto que esta não se resume à destinação econômica dada à coisa. Se o bem é por natureza destinado ao uso familiar e assim é feito, não existe desperdício de potencialidade para a sociedade, pois essa utilização a torna mais rica, embora em pequena escala. A residência utilizada para moradia da família, para tomarmos um exemplo mais palpável, cumpre com sua função social, embora pouca contribua para a redução do déficit habitacional. Situação diferente é aquele imóvel residencial sobre o qual o proprietário mantém uma postura inerte, deixando-o para fins especulativos, contribuindo, dessa forma, para a majoração do déficit habitacional.
Portanto qualquer propriedade, estática ou produtiva, tem uma função social, mesmo que às vezes o bem de consumo seja irrelevante para o Estado atingir os objetivos constitucionais, mesmo que ele cumpra sua função social pela mera apropriação e uso, visto que dessa forma atendem às necessidades humanas primárias. Quanto aos bens de produção, muitas vezes a busca da função social é mais complexa, sofrendo maior eficácia desse princípio.
Sobre a questão da função social, assim se posicionou o renomado civilista Silvio de Salvo Venosa: 
As vigas mestras para a utilização da propriedade estão na Lei Maior. Cabe ao legislador ordinário equacionar o equilíbrio entre o individual e o social. Cabe ao julgador, como vimos, traduzir esse equilíbrio e aparar os excessos no caso concreto sempre que necessário. Equilíbrio não é conflito, mas harmonização. [33] 
Também comentando a função social da propriedade, dessa maneira se manifestou o não menos renomado Gustavo Tepedino:
A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos cofins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade [...] Tal conclusão oferece suporte teórico para a correta compreensão da função social da propriedade, que terá, necessariamente, uma configuração flexível, mais uma vez devendo-se refutar os apriorismos ideológicos e homenagear o dado normativo. A função social modificar-se-á de estatuto para estatuto, sempre em conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos interesses em jogo. [34] 
A propriedade deixou de conferir apenas poderes ao titular do direito, mas também deveres. Aparece o dever de usar o bem, de dar a ele uma finalidade social, cujo conceito não é retratado apenas em nosso país. Pelo contrário, pode ser constatado que a sua introdução na estrutura do direito de propriedade ocorre em diversos países do mundo, principalmente naqueles que possuem um ordenamento jurídico mais avançado e moderno.
Nesse diapasão, pode ser citado o art. 42 da Carta Constitucional da República da Itália, que tem a seguinte redação:
A propriedade é reconhecida e garantida pela lei, a qual prescreve os seus modos de aquisição e de gozo e os limites a que está sujeita, a fim de realizar a sua função social e se tornar acessível a todos.
Ainda nessa linha de raciocínio, merece ser mencionada a Lei Fundamental de Bonn, tida como a Constituição da Alemanha, que assim dispõe em seu art. 14, II: "A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem-estar geral." 
Como pode ser verificado, a Carta Constitucional alemã primeiro faz referência às obrigações impostas pelo direito de propriedade, e depois aos poderes. 
Em suma, o princípio da função social nos leva a crer que a propriedade, para atender aos atuais anseios sociais, deve ser mais abrigo e menos exclusão, mais produção e menos especulação [35]. O caráter estritamente patrimonialista com o qual ela foi historicamente encarada não se justifica mais, visto que a pessoa humana deve prevalecer sobre qualquer outro valor. [36]

5. Efetivação do Princípio da Função Social por Intermédio do Instituto da Desapropriação
O instituto da desapropriação é um mecanismo extremamente útil na busca da efetivação do princípio da função social da propriedade. Mesmo porque essa realização, uma vez descumprida pelo proprietário sua obrigação perante a coletividade, deve ficar a cargo do Poder Público, que tem o poder coercitivo, e não de particulares. Daí a impertinência das invasões de terra promovidas por alguns movimentos sociais, especialmente o MST (Movimento dos Sem-Terra), que importam na configuração de uma situação de beligerância incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Cuida-se de instituto consagrado no ordenamento jurídico, podendo ser definido como o procedimento pelo qual o Estado, em virtude do seu poder de Império, retira do particular a sua propriedade, compulsoriamente, mediante o pagamento de indenização justa e prévia. Vislumbra-se flagrante supremacia do interesse público sobre o particular [37]. 
Pode ser fundada em utilidade pública, interesse público ou interesse social, sendo que a distinção entre utilidade e necessidade pública, com o advento do Decreto-Lei n.º 3.365/41, tornou-se meramente acadêmica, uma vez que o referido diploma legal unificou essas duas modalidades. No tocante ao cumprimento da função social da propriedade, interessa-nos a desapropriação com fulcro no interesse social. Este está estritamente relacionado às camadas mais necessitadas da população, no que concerne à melhoria das condições de vida, à eqüitativa distribuição das riquezas e à atenuação das desigualdades sociais.
Cabe ser consignado, desde logo, que os bens expropriados nesses moldes não têm como destino o patrimônio da Administração Pública [38], mas, sim, de terceiros, particulares, que estejam em condições de empregarem à propriedade a ambicionada função social. A introdução da desapropriação por interesse social no direito pátrio, aliás, ocorreu na Constituição Federal de 1946, forte no princípio da função social.
Existem três fundamentos constitucionais para a desapropriação por interesse social: a) art. 5º, XXIV, que é o poder geral de desapropriar, disciplinado pela Lei n.º 4.132/62; b) art. 182, que trata da propriedade urbana descumpridora dos requisitos da função social, previstos no Plano Diretor. Antes da utilização desse artifício, devem ser tomadas duas medidas: o parcelamento ou edificação compulsória, ou, restando infrutífero esse remédio, a tributação do IPTU progressiva no tempo. É notório o caráter sancionatório, uma vez que o pagamento da justa indenização é efetivado pela emissão de títulos da dívida pública resgatáveis em até dez anos; c) art. 184, que dispõe acerca da desapropriação para fins de reforma agrária, que recai sobre a propriedade rural. Também pode ser percebida a índole punitiva, visto que o pagamento da indenização é por intermédio de títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos.
As hipóteses de desapropriação-sanção, ou seja, aquelas em que a indenização pela perda da propriedade é efetivada com o pagamento em títulos, incidem, obrigatoriamente, sobre a propriedade descumpridora da função social. Nesses casos, a intervenção estatal funciona como punição pela inobservância de preceito constitucional.
A outra hipótese de desapropriação por interesse social, que é a prevista pelo art. 5º, inciso XXIV, da Carta Política, a qual a doutrina faz referência como poder geral de desapropriar [39], não recai necessariamente sobre a propriedade que não atende à finalidade social. Mesmo assim, a função social é a ela inerente, mesmo porque o princípio em análise inspirou o legislador a inserir a desapropriação por interesse social em nosso ordenamento jurídico, precisamente na Constituição Federal de 1946.
Ocorrendo uma das hipóteses de desapropriação-sanção, pode o proprietário, como meio de defesa, provar que o seu bem está cumprindo os requisitos apontados no texto constitucional, sendo o seu domínio, dessa forma, merecedor da tutela do ordenamento jurídico. Por outro lado, se a desapropriação desenrolada for aquela regulamentada pela Lei n.º 4.132/62, ou seja, o poder geral de desapropriar, a defesa do expropriada é bem menos ampla, pois a expropriação nesses casos, em regra, é compulsória.

Considerações Finais
A conceituação do direito de propriedade evoluiu através dos tempos, deixando ele de ser apenas condicionado à individualidade do proprietário. Não pode esse direito ser exercido de maneira absoluta, egoística, mas, sim, com o objetivo de atender não apenas aos interesses do proprietário, como também de toda a coletividade. Por essa razão, é sustentada a existência de interesses não-proprietários, que devem ser considerados e respeitados. Esse princípio, cabe ser frisado, impõe ao proprietário não apenas a obrigação de se abster, de não violar uma regra, mas também de fazer, isto é, utilizar a coisa em conformidade com os anseios coletivos. Porém, a função social, embora ambicionada por toda a coletividade, deve ser efetivada de forma imperativa apenas pelo Estado, por intermédio do instituto da desapropriação. É inconcebível que particulares busquem, com invasões, dar a determinado imóvel a função social.
A função social da propriedade não se resume apenas à equilibrada divisão dos bens, mas também a outros direitos inerentes à construção de uma sociedade mais justa, que é o objetivo de toda a coletividade. Por isso não pode ser deixada em segundo plano a questão ambiental, que é atinente a todos os indivíduos, detentores do direito de viver em um meio ambiente saudável e equilibrado, em condições, enfim, de propiciar uma vida digna ao ser humano. De nada adianta uma propriedade ser extremamente produtiva sob o ponto de vista econômico se a atuação do proprietário enseja a devastação da ecologia. Tal situação implicaria um custo social extremamente indesejável, mesmo porque a Constituição Federal assegura a todos o direito de viver em um meio ambiente equilibrado.
Da mesma forma, o desrespeito às leis trabalhistas, como é o caso, por exemplo, do trabalho escravo, também implica inadequação do imóvel à finalidade social.
A Constituição Federal de 1988, nesse aspecto, representou vitais modificações no ordenamento jurídico pátrio, sendo imprescindível uma leitura do Direito Civil, especialmente no que tange ao direito de propriedade, com lentes constitucionais.
Mesmo assim, jamais pode ser esquecido que a propriedade continua sendo privada e, portanto, deve ser respeitada. Tanto é assim que o proprietário, mesmo tendo seu bem desapropriado pela Administração em decorrência da inobservância da finalidade social preceituada, tem direito a receber uma indenização, justa e prévia, segundo o texto constitucional, pela perda da propriedade. Havendo arbitrariedade estatal, há medidas judiciais cabíveis para a defesa do direito de propriedade.

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WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de: A. M. Botelho Hespenha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.

NOTAS
01 GOMES, Orlando. Direitos reais. Atualização de: Luiz Edson Fachin. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
02 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das "propriedades": da funcionalidade primitiva ao conceito atual de função social. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (coord.). Aspectos controvertidos do novo código civil: escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
03 GOMES, 2004.
04 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de: A. M. Botelho Hespenha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
05 DUGUIT apud GOMES, 2004, p. 126. 
06 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: de acordo com a Lei n.º 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
07 Ibidem, p. 177.
08 Ibidem., p. 177.
09 Ibidem, p. 178.
10 RIZZARDO, 2004, p. 178.
11 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
12 Ibidem.
13 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
14 TEPEDINO, 2004.
15 GONDINHO, 2000.
16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 33, jul. 1999. Disponível em: 
17 GONDINHO, 2000.
18 TEPEDINO, 2004.
19 Ibidem.
20 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
21 TEPEDINO, 2004.
22 HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
23 SÉGUIN, Elida. Estatuto da cidade: promessa de inclusão social, justiça social. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 143.
24 SÉGUIN, 2002.
25 TEPEDINO, 2004.
26 Marco Aurélio S. Vianna firmou posição em sentido contrário, isto é, entende que o princípio da função social interfere apenas no exercício do direito de propriedade, e não em seu conteúdo. Tal entendimento ainda é acompanhado por parte da doutrina, embora minoritária. (VIANNA, Marco Aurélio S. Comentários ao novo código civil, volume XVI: dos direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
27 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 251, grifo do autor.
28 PERLINGIERI apud TEPEDINO, 2004.
29 GONDINHO, 2000.
30 TEPEDINO, 2004.
31 GRAU, 1991.
32 COMPARATO apud GRAU, 1991. 
33 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 5, p. 157.
34 TEPEDINO, 2004, p. 317.
35 FACHIN, Luiz Edson. Apreciação crítica do código civil de 2002 na perspectiva constitucional do direito civil contemporâneo. Revista Jurídica. v. 51, n. 34, p. 17–22, fev. 2003.
36 LÔBO, 1999.
37 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo, Atlas, 2004.
38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
39 MELLO, 2002.