A idéia de direito de propriedade, como é sabido, vem mudando com o desenrolar da história. Hoje em dia, é inviável a visão desse direito de forma absoluta e individualista, de modo que o proprietário não mais pode utilizar o seu bem egoística e indiscriminadamente. A noção liberal da propriedade, que atende aos anseios da burguesia, vitoriosa na Revolução Francesa, e que foi consagrada pelo Código Napoleônico, não consegue mais atender aos anseios sociais do século XXI.
Contudo, forçoso reconhecer-se que o processo de modificação dessas premissas foi longo, fruto da própria evolução da sociedade. É importante o estudo do modo como ocorreu essa mudança, para então entendermos as razões que ensejaram o estágio atual em que nos encontramos no tocante à normatização do direito em relevo.
Atualmente, a problemática da efetivação do princípio da função social é um desafio a ser enfrentado, porquanto a mera inclusão desse princípio no texto constitucional, como se uma norma programática sem nenhuma eficácia fosse, não atenderia às necessidades coletivas postas em evidência.
1. Evolução Histórica
O princípio da função social da propriedade foi pela primeira vez mencionado no ordenamento jurídico pátrio na Constituição Federal de 1967. Com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, a Carta de 1967 inclui a função social da propriedade como princípio basilar da ordem econômica e social (art. 160, III), coexistente com a garantia da propriedade privada. Alguns chegam a encarar esse princípio como uma verdadeira hipoteca social sobre a propriedade.
Deve-se abandonar o ponto de vista romano da propriedade e adotar-se uma concepção finalista, de modo a adequar o instituto às atuais necessidades sociais. [01]
Do ponto de vista histórico, a idéia de função social foi primeiramente trabalhada por São Tomás de Aquino, portanto guardando relação com a doutrina cristã da Idade Média. Algum tempo depois, o jusnaturalismo encarou esse princípio como uma necessidade da utilização dos bens como instrumento da efetivação da justiça divina.
Na sociedade liberal do século XIX, a propriedade foi instrumento de afirmação da inteligência e liberdade humana. O homem era livre para contratar e adquirir bens. Podia ser averiguada a supremacia do individualismo, sendo que o acúmulo de riquezas era sinônimo de poder e sucesso. Esquecia-se de que havia um grande contingente populacional à margem dessas possibilidades.
Foi nesse ambiente que a noção de função social da propriedade surgiu, originalmente, como reação ao abuso de direito. A jurisprudência francesa, em meados do século XIX, foi a responsável por essa construção jurídica. Tal hipótese era verificada na prática tendo em vista a concepção objetiva, pois era necessária a presença de três elementos: a intenção de prejudicar outro sujeito, a ação culposa ou negligente e a inexistência de um interesse sério e legítimo do agente. O aludido abuso de direito podia restar configurado não apenas na maneira como o proprietário usava o seu bem, mas também pelo modo como ele o alienava, ou seja, guardava relação com o direito de dispor. Essa teoria, como pode ser constatado, tornou-se insuficiente para atender às necessidades coletivas com o transcorrer dos anos, porque trazia como elemento necessário para o não-cumprimento da função social a intenção do proprietário de causar prejuízo a terceiros. Mas é sabido que o proprietário, ao agir de maneira egoística em relação a sua propriedade, não tem a intenção norteadora de prejudicar alguém, mas, sim, de beneficiar apenas a si próprio, o que implica o prejuízo da sociedade de maneira indireta. O conceito de função social evoluiu de tal maneira que nos dias atuais é segura a afirmação de que é possível o descumprimento da função social sem a necessidade da ocorrência do abuso do direito. [02]
No momento histórico do final do século XIX, o marxismo fez severas críticas ao modelo de propriedade vigente, sustentando que ele era mobilizador de riqueza e representava o ideal capitalista de supremacia do capital sobre o trabalho. Ainda hoje, aliás, alguns doutrinadores, muitos com um revés comunista, vinculam o princípio da função social ao socialismo equivocadamente. Tal associação não procede, visto que a propriedade continua sendo privada, sendo tutelada e garantida pela função social, que legitima o título adquirido. Permanece sendo exclusiva e de livre transmissibilidade. Aliás, o grande empresário que garante ao seu bem altos graus de produtividade estará dando a ele a devida destinação social. Deve o proprietário exercer seu direito de modo a realizar o interesse social, sem, entretanto, eliminar o domínio privado sobre o bem, sendo-lhe asseguradas as faculdades do uso, gozo e disposição. [03]
O que se observa é uma mudança da postura liberal adotada pelo Estado, que após a primeira guerra mundial passou a intervir mais na economia, deixando de ser mero regulador. O objetivo dessa atitude mais participativa era diminuir as gritantes desigualdades sociais, buscando melhorar a vida dos marginalizados. [04]
Leon Duguit teve grande importância na elaboração da idéia atual de função social, muito porque era defensor da idéia de que os direitos se justificam apenas quando têm como escopo contribuir para uma missão social. A sua conceituação de função social tornou-se clássica:
A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a interdependência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza social utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que deve se modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder. [05]
A Igreja Católica foi, sem dúvida, uma das grandes inspiradoras para a propagação dessa nova visão. Desde os estudos de São Tomás de Aquino, na Idade Média, a doutrina cristã tem essa preocupação. É o que pode ser compreendido após a leitura das encíclicas Mater et Magistra, do Papa João XXIII, do ano de 1961, e Centesimus Cennus, do Papa João Paulo II, datada de 1991, entre outras, nas quais a propriedade é encarada como um meio de instrumentalizar a subsistência da humanidade. É defendido que o exercício do direito de propriedade deve se dar de modo mais solidário e em prol do coletivo. [06]
Na Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, era pregado que: "Os que têm recebido de Deus maior abundância de bens, sejam corporais ou externos, sejam internos ou espirituais, os receberam para que com eles atendem a sua própria perfeição e, ao mesmo tempo, como ministros da Divina Providência, ao proveito dos demais. [07]"
A Encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII, ao seu turno, que trouxe grandes inovações na doutrina social da Igreja Católica, ensina que: "[...] O direito à propriedade privada é intrinsicamente inerente à função social. [08]"
No mesmo diapasão, a Encíclica Populorum Progressio, do mesmo Papa, traz a seguinte lição:
[...] A propriedade não constitui um direito incondicional e absoluto. Não há qualquer razão para reservar-se ao uso exclusivo o que supera à própria necessidade, quando aos demais falta o necessário. Em uma palavra: o direito à propriedade não deve jamais exercitar-se em detrimento da utilidade comum. [09]
No mesmo texto, em caráter mais rígido, é proclamado que: "Se alguém tem bens deste mundo, e vendo um irmão em necessidade e não o atende, como é possível que ele resida no amor de Deus? [10]"
2. Conceituação do Princípio da Função Social da Propriedade
Assim, a preocupação em dar à propriedade, mesmo que privada, uma destinação mais vinculada ao benefício coletivo não se faz presente apenas em relação à produtividade, embora seja inegável que a economia tem papel fundamental na busca de uma existência mais digna para todos. Recentemente, a moradia vem sendo uma grande preocupação. A má distribuição das terras gera injustiça e, conseqüentemente, violência no seio da comunidade. Deve haver, por isso, maior solidariedade no uso das coisas materiais. Trata-se de uma salutar reação do ordenamento contra o desperdício de potencialidade para satisfazer as necessidades humanas, materiais e pessoais.
O conceito do princípio em testilha, portanto, é relativo e flexível, podendo variar de acordo com a doutrina e o sistema positivo de cada época e região. O direito de propriedade pode ser compreendido sob dois aspectos: um estrutural, e outro funcional, sendo que a doutrina, via de regra, dá mais atenção ao primeiro.
Os poderes do proprietário de usar, gozar e dispor da coisa, e reivindicá-la contra quem a possua injustamente, compõem a estrutura do direito. Dessa estrutura pode ser extraído um elemento econômico, ou interno, e outro jurídico, ou externo. O elemento econômico está ligado às faculdades de usar, gozar e dispor, pois é por intermédio delas que o proprietário obtém vantagens econômicas. Ao seu turno, o elemento jurídico seria a exclusão das ingerências alheias, ou seja, os meios de defesa concedidos pelo ordenamento jurídico para tutelar o proprietário contra ataques externos indevidos. [11] Nesse tocante, o direito é oponível erga omnes, pois é sabido que toda a coletividade deve sempre respeitar a propriedade alheia. A soma desses dois elementos resulta na estrutura do direito de propriedade.
O aspecto funcional é a ideologia inerente, o aspecto dinâmico da propriedade. É o papel que ela desempenha em uma determinada sociedade, operando no mundo concreto. Ela sempre exerceu uma função na sociedade, seja para demonstrar claramente a supremacia do capital sobre o trabalho na época liberal, seja para servir de instrumento para uma sociedade mais justa e igualitária, como hoje, no Estado Social. Quando o ordenamento reconheceu que esse direito deve proteger o interesse coletivo, e não o individual, a função da propriedade tornou-se social. [12]
A partir de então, a titularidade da situação proprietária passa a impor ao seu titular o respeito às situações não-proprietárias. Hoje a propriedade é caracterizada menos pelo seu conteúdo estrutural e mais pela finalidade econômica e social do bem sobre a qual incide. A função social, portanto, incide sobre o conteúdo e conceito do direito de propriedade. Sobre essa questão, entretanto, cabe ser frisado que parte considerável da doutrina entende que o princípio da função social não interfere na substância do direito, mas apenas no seu exercício. Pela explanação já feita, fica clara nossa discordância, pois acreditamos que a função social incide na substância do direito, sendo inviável conceituar o direito de propriedade, nos dias de hoje, sem mencioná-la. Caso contrário, estaríamos tratando de mera limitação.
Deve haver compatibilização da situação jurídica de propriedade com situações não-proprietárias, sendo que estas, na hipótese de conflito, receberam da sistemática constitucional uma situação de vantagem. Chegaram a ser encarados pela doutrina como contra-direitos, mas merecedores de tutela. É o caso dos interesses difusos, como a questão do meio ambiente. Hoje em dia, esses contra-direitos são protegidos pela Carta Fundamental, estando inclusive em situação de vantagem, visto que são princípios do ordenamento. Para alguns autores, a expressão contra-direito pode ser entendida, em sentido diverso ao da idéia mais antiga, como os direitos das pessoas menos favorecidas ou de toda a sociedade, como é caso do direito à saúde e ao meio ambiente equilibrado, por exemplo, não sendo protegidos apenas no momento da violação. [13]
No ordenamento jurídico pátrio, a Constituição Federal de 1988 provocou essa profunda alteração da visão do direito de propriedade. Antes de analisarmos o modo como foi feita essa operação, faz-se necessário um breve histórico do direito de propriedade em nossos sistemas constitucionais, para assim ser entendido o motivo pelo qual chegamos ao atual estágio.
3. Tratamento Concedido pelas Constituições Brasileiras Anteriores
A Constituição Federal de 1824, que foi a primeira do Brasil independente, ainda na época do Império, incluiu o direito de propriedade no rol dos direitos individuais, em seu artigo 179. Era um direito absoluto, podendo ser excepcionado apenas pela desapropriação, que tinha como requisito básico a indenização em dinheiro. Cabe ressaltar que o poder de desapropriar não está vinculado à função social, visto que a força expropriatória pode incidir mesmo sobre bens cumpridores da função social, desde que haja indenização prévia, justa e em dinheiro. A desapropriação não possui a natureza jurídica de sanção, mas é o exercício de um poder estatal em razão da necessidade pública. É mera limitação pública ao direito de propriedade, possibilitando a transferência compulsória de um bem para o patrimônio público. A função social supera a questão do poder expropriante, pois está ligada à estrutura do direito de propriedade, influenciando seu conceito, exercício e tutela.
Em nada inovou a Carta Política de 1891, que inaugurou a República em nosso país. A propriedade continuava sendo um direito absoluto, nos mesmos moldes do Código Napoleônico. O artigo 72, § 17, que enfrentava a questão, era resultado das conveniências políticas da época, visto que a economia nacional estava amparada na agricultura do café. Não era de interesse dos latifundiários uma noção mais social do direito de propriedade, obviamente.
A Constituição Federal de 1934, por sua vez, trouxe inovações nessa seara ao afirmar no artigo 113, 17, que o direito de propriedade não podia ser exercido de forma contrária ao interesse social ou coletivo. Não foi eficaz na tutela de interesses não-proprietários, uma vez que a lei complementar necessária para a regulamentação nunca foi editada. Mesmo assim, foi salutar a influência exercida pelas constituições mexicana (1917) e alemã (1919). [14]
Esse texto constitucional teve vida curta, porque já em 1937 foi promulgada uma nova Constituição, que representou verdadeiro retrocesso. No art. 122, 14, não foi proibido o exercício contrário aos interesses sociais e coletivos, embora tenha sido reconhecido o caráter não-absoluto desse direito.
O cunho social característico da Lei Maior de 1946 não poderia ter deixado de influenciar o direito à propriedade. O art. 141 garantia o direito como inviolável, salvo hipótese de desapropriação. O art. 147, ao seu turno, trouxe mudança substancial, pois inaugurou em nosso ordenamento o condicionamento do exercício do direito de propriedade ao bem-estar social, permitindo a justa distribuição da propriedade. As relações sociais existentes continuaram injustas para os menos afortunados, porém em virtude do conservadorismo dos operadores do direito e da inércia da classe política em normatizar o dispositivo constitucional, como ocorre até hoje. Como geralmente acontece no Brasil, infelizmente, o referido dispositivo tornou-se norma programática de aplicação limitada, visto que nesse país os direitos sociais dificilmente saem do papel. [15]
Já sob a vigência do malfadado regime militar, foi outorgada ao povo brasileiro a Constituição Federal de 1967, que foi profundamente modificada pela Emenda Constitucional de 1969. Na redação, pela primeira vez foi usado o termo função social para dispor acerca da necessária coexistência entre os interesses do proprietário e da sociedade. Assim era disposto nos artigos 157, III e 160, III. Entretanto, gize-se que era princípio da ordem econômica e social apenas, não sendo elevado ao nível de garantia fundamental do cidadão, como fez o atual texto constitucional, o que acarreta vital diferença. Cumpre consignar, entretanto, que durante a vigência da Constituição de 1967 o referido princípio era aplicado exclusivamente à propriedade privada.
4. Normatização Conferida pela Constituição Federal de 1988
A Carta Federal de 1988 inclui a função social da propriedade como princípio da ordem econômica e social, no art. 170, III, como fizeram as duas últimas constituições. Mas fez mais que isso: assegurou a função social no âmbito dos direitos e garantias fundamentais do cidadão no art. 5º, XXIII. Isso significa que a função social foi encarada pelo constituinte como princípio próprio e autônomo, apto a instrumentalizar todo o tecido constitucional, e, por via de conseqüência, todo o ordenamento infraconstitucional. O direito de propriedade é garantido, desde que cumprida a sua função social. É tratado, ao mesmo tempo, como direito individual fundamental e de interesse público, visando a atender os anseios sociais.
Houve, como pode ser visto, uma acomodação de direitos, visto que o art. 5º tanto faz referência ao direito individual da propriedade, no inciso XXII, como à função social, logo adiante, no inciso seguinte. Não houve uma clara solução do problema, sendo viável a aplicação do princípio da proporcionalidade, em cada caso concreto, para dirimir essa questão. [16]
A dignidade da pessoa é regra basilar, influenciando o conteúdo da função social. Pela sistemática, cumprirá a função social a propriedade que, respeitando a dignidade humana, contribua para o desenvolvimento nacional, para a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais. Os parâmetros para tanto são concretos, ao contrário do que possa parecer.
No tocante à propriedade rural, o art. 186 da Carta Constitucional estabelece as condições necessárias para o alcance da função social, devendo ser atendidos, simultaneamente, os seguintes requisitos:
I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Não basta, entretanto, ser extremamente produtiva se a produção estiver baseada, por exemplo, no trabalho escravo ou na exploração predatória do meio ambiente. [17] Em razão disso, é infeliz a disposição do art. 185 que torna a propriedade produtiva insuscetível à desapropriação sancionatória, mesmo que descumpridora de sua função social. Segundo a leitura conjunta dos dispositivos constitucionais, não adianta haver uma produtividade com custo social indesejável. É sabido, no entanto, que a redação de tal dispositivo resultou de uma grande pressão política da bancada rural presente na Assembléia Nacional Constituinte, visto que os latifundiários tinham, na época e ainda hoje, uma grande e eficaz representação.
Mas há quem defenda o contrário, ou seja, que a propriedade descumpridora da função social, mesmo que produtiva, pode ser desapropriada mediante o pagamento com títulos, sendo desnecessária a indenização prévia e em dinheiro. Segundo essa posição, a Constituição deve ser interpretada de forma sistemática, e não fragmentada. O princípio da função social deve instrumentalizar todo o tecido constitucional, funcionando como verdadeiro parâmetro interpretativo. A Constituição de 1988 optou por prestigiar os valores existenciais condizentes com a dignidade da pessoa humana, deixando em segundo plano o individualismo. Conseqüentemente, os valores patrimoniais passaram a figuram em menor escala. [18]
Em razão disso, não é viável o entendimento no sentido de que a propriedade produtiva, mesmo que embasada no trabalho escravo ou na exploração degradante do meio ambiente, não possa ser expropriada com caráter sancionatório em virtude de um dispositivo constitucional que não está em harmonia com o sistema do qual faz parte. [19]
Em sentido oposto, pugnando pela interpretação literal da norma, está o respeitado José Afonso da Silva. [20]
Qualquer interpretação contraditória dos princípios constitucionais informativos representa violação aos fundamentos objetivos da República brasileira. Não se constrói uma sociedade justa e solidária, erradicadora da pobreza e promovedora do bem comum com soluções patrimonialistas, desprovidas de escrúpulos com as garantias existenciais asseguradas pela Lei Maior.
No mesmo diapasão, está o entendimento de Gustavo Tepedino. [21] Segundo esse autor, deveria o artigo 185 ser compreendido em harmonia com os artigos 1º, 3º, 5º, XXII, XXIII, 170, II, III, 184, e 186 da Carta Fundamental.
Superada essa questão, pode ser afirmado que se não atender a todos esses requisitos, fica o titular da coisa sujeito à expropriação para fins de reforma agrária, prevista no art. 184 do Texto Constitucional. Essa é uma das hipóteses da chamada desapropriação-sanção, que se condiciona para que seja efetivada ao não-cumprimento da função social, sendo o pagamento da indenização, nessa hipótese, por meio de títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos. O expropriado não recebe, portanto, anteriormente à desapropriação a integralidade da reparação, sendo questionável a anterioridade desta. Essa matéria é regulada pela Lei n.º 8.629/1993 e pela Lei Complementar n.º 76/1993, alterada em alguns aspectos pela Lei Complementar n.º 88/1996.
Mas há casos diferenciados, que merecem uma especial atenção do aplicador do direito. O referido art. 186 da Carta Federal alude que existem algumas condições que devem ser cumpridas, simultaneamente, para que a propriedade cumpra sua função social. Em algumas situações, no entanto, um requisito acaba excluindo o outro, de modo a ser impossível o cumprimento instantâneo de todos. É o caso do conflito por vezes existente entre proteção do meio-ambiente e produtividade, pois, em regra, ambos os valores devem ser atingidos para que a propriedade exerça o papel esperado pela comunidade. No entanto, algumas vezes a preservação atinente a determinada área é de tal natureza e importância que se torna inviável, e mesmo impossível, a produtividade, ao menos sob o enfoque econômico, no local.
Tal situação acontece, por exemplo, em uma área de floresta de araucárias, cuja preservação integral é de total interesse, e mesmo necessidade, da coletividade. Nessa região, especificamente, não será suportável qualquer atividade econômica que venha a torná-la produtiva. Dessa forma, para que essa propriedade cumpra com sua função social, o exercício do direito de propriedade não poderá ter como objetivo a produção, visto que a vegetação constituída sobre ela deverá ser integralmente preservada. A aplicação do texto legal, nesse passo, não é absoluta, devendo o intérprete ter sempre em vista a real intenção do legislador ao elaborar determinada norma. Isso feito, terá o princípio da função social a devida e ambicionada aplicação concreta.
Ao tratar da propriedade urbana, no art. 182, §2º, é ponderado que ela "cumpre com sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor", sendo que este deve ser feito, impreterivelmente, nas cidades com população superior a vinte mil habitantes, sendo considerado o instrumento básico da política urbana.
O § 4º do referido dispositivo constitucional possibilita ao Município exigir do particular que este utilize a sua propriedade de maneira condizente com o princípio da função social, sob pena de sobre ele recair, no caso da não-verificação do correto aproveitamento:
I - parcelamento ou edificação compulsório;
II - imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até 10 anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.
Gize-se que a desapropriação-sanção, prevista no inciso III, só pode ser realizada, ao menos nessa situação de propriedade urbana, se as duas hipóteses anteriores não surtirem efeitos. Caso contrário, é vedada à Administração a utilização desse expediente.
A Lei n.º 10.257, de 10.07.01 (Estatuto da Cidade), regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e disciplina as diretrizes gerais da política urbana.
A função social da propriedade urbana é atingida quando cumpridos os requisitos considerados essenciais pelo Plano Diretor. Por essa razão, a definição de função social tem uma margem de variabilidade entre uma cidade e outra, ou mesmo de uma zona para outra do município, devendo ser levados em consideração os problemas e as necessidades de cada região. A situação particular de cada cidade irá influenciar a elaboração do Plano Diretor. [22]
Segundo lição de Elida Séguin, pode-se dizer, de maneira geral, que a função social da cidade compreende:
[...] o direito da população a uma moradia digna, transporte coletivo em número suficiente e com periodicidade compatível com a demanda, saneamento básico, água potável, serviço de limpeza urbana, drenagem das vias de circulação, energia elétrica, gás canalizado, abastecimento de alimentos e bens, iluminação pública, saúde pública, educação, cultura, creche, lazer, contenção de encostas, segurança e preservação, proteção e recuperação do patrimônio ambiental e cultural, com especial enfoque para o entorno. [23]
A questão do meio ambiente recebeu especial atenção do Estatuto da Cidade. O incentivo à arborização da área urbana é um meio extremamente eficaz na promoção de uma melhor qualidade de vida da população, sendo que esse procedimento é uma forma de mitigar a impermeabilização do solo urbano, bem como de diminuir o efeito das altas temperaturas e da poluição sonora, segundo os biólogos. A fixação de um índice que correlacione a necessidade de área verde por habitante em cada metro quadrado colabora para a implementação dessa idéia. Um meio ambiente equilibrado, e arborizado, contribui para a diminuir sensações negativas ligadas ao mundo moderno, como medo, stress e ansiedade, gerando no homem um sentimento de paz e tranqüilidade. [24]
A aplicação do princípio da função social da propriedade foi restringida pela Lei Maior, ficando delimitada, na área urbana, pelo aproveitamento preceituado pelo Plano Diretor e, no campo rural, à adequada utilização e justa distribuição das terras, no intuito de promover o bem-estar social. A conseqüência é que quando uma determinada propriedade não atende à função social, ela não pode ser tutelada pelo ordenamento jurídico. [25]
Em relação ao campo, merece ser frisado que a desapropriação é um instrumento usado pela Administração Pública para garantir o acesso ao principal meio de produção, a terra, àqueles que têm o conhecimento para cultivá-la, mas que não têm a condição econômica de dela ser proprietário. Para evitar o abuso dessa concessão, o art. 189 da Constituição impõe que "os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão os títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos".
A função social representa um freio na conduta anti-social em relação à propriedade, mas não retira todo o seu exercício. Representa, isso sim, uma reação contra os desperdícios de potencialidade. O proprietário continua com as prerrogativas de usar, gozar, fruir, dispor e reivindicar a coisa. Ainda é o dono, embora esteja permanentemente submetido ao controle social sobre o seu comportamento enquanto detentor do senhorio sobre a coisa. A propriedade, como já foi afirmado, continua sendo privada, sendo a função social, que não pode ser contrária ao direito mínimo, um instrumento de garantia dela, visto ser inviável qualquer tentativa de socialização sem prévia e justa indenização.
O exercício do direito de propriedade sempre sofreu limitações, deixando há muito tempo de ser absoluto. Os direitos de vizinhança, os direitos reais sobre a coisa alheia e o poder de polícia são exemplos desses limites impostos. Tais restrições não se confundem com a função social, visto que esta incide no conteúdo do direito [26], fazendo parte da estrutura, portanto. O limite sacrifica a extensão do direito em razão de interesse público ou privado, tendo noção negativa, ao contrário da função social, que pode impor ao proprietário obrigações positivas, como a obrigação de fazer. O limite, por conseguinte, não está apto a promover os valores fundamentais do ordenamento, que é a missão da função social. Esta, assim, acaba assumindo papel promocional.
Nesse diapasão, assim se manifestou Eros Roberto Grau: "O princípio da função social da propriedade, desta sorte, passa a integrar o conceito jurídico-positivo de propriedade (destas propriedades), de modo a determinar profundas alterações estruturais na sua interioridade. [27]"
Outra diferença importante é que as limitações atingem o exercício do direito, e não a substância. A função social atinge a essência do direito, modificando seu conteúdo, e é a razão pela qual o ordenamento tutela e garante o domínio, mas não chega a ser o motivo pelo qual o direito é atribuído ao titular, uma vez que, inegavelmente, o principal objetivo do proprietário, em regra, é satisfazer seus interesses particulares. Defender o contrário nesse aspecto chegaria a ser ingenuidade. Assim, a função social legitima e justifica as intervenções legislativas, que devem ser submetidas ao exame de constitucionalidade.
A atribuição de poderes não é mais plena, sendo vedado ao proprietário exercer os direitos inerentes a sua condição de modo egoístico e inescrupuloso. Também não se dá, portanto, em caráter negativo, sendo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria possibilidade de efetuar suas atividades de senhorio sobre o bem. Tampouco se trata de ônus, pois a propriedade deve ser usada de maneira normal, cumprindo o fim para o qual se destina. A propriedade rural deve ser produtiva pela natureza lógica de sua destinação, que deve visar à produção, e não à especulação. Se o titular do bem age com desídia, não o utilizando nos conformes de sua potencialidade, deve sofrer as cominações legais para que a propriedade seja colocada em seu caminho normal.
Ainda nessa linha de idéias, costumeiramente é feita uma diferenciação entre a propriedade que tem uma função social e a propriedade que é uma função social. [28] A segunda é atribuída a alguém no interesse coletivo, encerrando deveres, obrigações e ônus, ao passo que a primeira permanece como situação subjetiva do interesse particular, que ocasionalmente é investido na função social.
Pelo exposto, pode ser afirmado que a propriedade, portanto, não se restringe apenas a uma relação entre sujeito e objeto, situação típica da idéia de direito real absoluto. Há, agora, um compromisso perante toda a coletividade. Por essa razão, é defendido por alguns que a propriedade deixou de ser apenas um direito real.
Os destinatários da função social seriam o titular do direito de propriedade, o legislador e o juiz.
Para o titular do direito ela assume o papel de princípio geral. A partir de então o titular não mais possui o livre arbítrio, uma vez que não pode perseguir fins anti-sociais. Para ser merecedor da tutela do sistema, deve proceder de acordo com o motivo pelo qual o direito lhe foi outorgado, que é a promoção dos valores fundamentais da República elencados pelo texto constitucional.
Já o legislador tem o dever de não conceder ao titular do direito poderes contraditórios à função social, mas sim os necessários para perseguir os objetivos constitucionais.
O juiz, por sua vez, está vinculado ao princípio no aspecto interpretativo da norma, assim como os demais operadores do direito, não sendo viável a aplicação de preceitos normativos incompatíveis. Da mesma forma, deve o princípio ser utilizado para suprir lacunas legais, visto que ele tem alcance geral. Deve ficar bem claro, no entanto, que não deve ocorrer o uso indiscriminado do princípio, além de seu alcance, visto que a sociedade não precisa nem anseia por um direito alternativo, tampouco resistência injustificável em aplicá-lo, configurando miopia jurídica, uma vez que o princípio tem normatividade. [29] Esse problema se transferiu da esfera normativa para a intelectual, pois alguns ainda não conseguiram se desvincular da noção história, e ultrapassada, do direito de propriedade visto de maneira absoluta e intangível, nos moldes romanos e napoleônicos. Daí a crise nessa seara do Direito Civil.
Nesse ponto, não pode o intérprete escolher o caminho mais cômodo da noção do direito de propriedade anterior ao advento da atual Carta Fundamental. É impossível interromper a história e ignorar os fatos sociais que se sucederam. [30]
Outra discussão diz respeito à incidência do princípio da função social, pois alguns defendem que ele recai sobre todos os bens, ao passo que outros aduzem que ele incide apenas sobre os bens de produção, e não sobre os bens de consumo, utilizando critérios econômicos para tanto. Eros Roberto Grau [31] e Fábio Konder Comparato [32] são dois autores que se filiam à segunda corrente, ou seja, entendem que a função social apenas tem aplicação aos bens de produção, sob o argumento de que a utilidade dos bens de consumo é esgotada na própria fruição. Esses bens têm função restrita à subsistência individual ou familiar, sem maiores conseqüências sociais.
Guardada a devida vênia aos respeitados juristas, não concordamos com essa linha de pensamento. O fato de o bem ser utilizado para subsistência individual não o exclui da incidência da função social, visto que esta não se resume à destinação econômica dada à coisa. Se o bem é por natureza destinado ao uso familiar e assim é feito, não existe desperdício de potencialidade para a sociedade, pois essa utilização a torna mais rica, embora em pequena escala. A residência utilizada para moradia da família, para tomarmos um exemplo mais palpável, cumpre com sua função social, embora pouca contribua para a redução do déficit habitacional. Situação diferente é aquele imóvel residencial sobre o qual o proprietário mantém uma postura inerte, deixando-o para fins especulativos, contribuindo, dessa forma, para a majoração do déficit habitacional.
Portanto qualquer propriedade, estática ou produtiva, tem uma função social, mesmo que às vezes o bem de consumo seja irrelevante para o Estado atingir os objetivos constitucionais, mesmo que ele cumpra sua função social pela mera apropriação e uso, visto que dessa forma atendem às necessidades humanas primárias. Quanto aos bens de produção, muitas vezes a busca da função social é mais complexa, sofrendo maior eficácia desse princípio.
Sobre a questão da função social, assim se posicionou o renomado civilista Silvio de Salvo Venosa:
As vigas mestras para a utilização da propriedade estão na Lei Maior. Cabe ao legislador ordinário equacionar o equilíbrio entre o individual e o social. Cabe ao julgador, como vimos, traduzir esse equilíbrio e aparar os excessos no caso concreto sempre que necessário. Equilíbrio não é conflito, mas harmonização. [33]
Também comentando a função social da propriedade, dessa maneira se manifestou o não menos renomado Gustavo Tepedino:
A propriedade, portanto, não seria mais aquela atribuição de poder tendencialmente plena, cujos cofins são definidos externamente, ou, de qualquer modo, em caráter predominantemente negativo, de tal modo que, até uma certa demarcação, o proprietário teria espaço livre para suas atividades e para a emanação de sua senhoria sobre o bem. A determinação do conteúdo da propriedade, ao contrário, dependerá de centros de interesses extraproprietários, os quais vão ser regulados no âmbito da relação jurídica de propriedade [...] Tal conclusão oferece suporte teórico para a correta compreensão da função social da propriedade, que terá, necessariamente, uma configuração flexível, mais uma vez devendo-se refutar os apriorismos ideológicos e homenagear o dado normativo. A função social modificar-se-á de estatuto para estatuto, sempre em conformidade com os preceitos constitucionais e com a concreta regulamentação dos interesses em jogo. [34]
A propriedade deixou de conferir apenas poderes ao titular do direito, mas também deveres. Aparece o dever de usar o bem, de dar a ele uma finalidade social, cujo conceito não é retratado apenas em nosso país. Pelo contrário, pode ser constatado que a sua introdução na estrutura do direito de propriedade ocorre em diversos países do mundo, principalmente naqueles que possuem um ordenamento jurídico mais avançado e moderno.
Nesse diapasão, pode ser citado o art. 42 da Carta Constitucional da República da Itália, que tem a seguinte redação:
A propriedade é reconhecida e garantida pela lei, a qual prescreve os seus modos de aquisição e de gozo e os limites a que está sujeita, a fim de realizar a sua função social e se tornar acessível a todos.
Ainda nessa linha de raciocínio, merece ser mencionada a Lei Fundamental de Bonn, tida como a Constituição da Alemanha, que assim dispõe em seu art. 14, II: "A propriedade obriga. O seu uso deve ao mesmo tempo servir o bem-estar geral."
Como pode ser verificado, a Carta Constitucional alemã primeiro faz referência às obrigações impostas pelo direito de propriedade, e depois aos poderes.
Em suma, o princípio da função social nos leva a crer que a propriedade, para atender aos atuais anseios sociais, deve ser mais abrigo e menos exclusão, mais produção e menos especulação [35]. O caráter estritamente patrimonialista com o qual ela foi historicamente encarada não se justifica mais, visto que a pessoa humana deve prevalecer sobre qualquer outro valor. [36]
5. Efetivação do Princípio da Função Social por Intermédio do Instituto da Desapropriação
O instituto da desapropriação é um mecanismo extremamente útil na busca da efetivação do princípio da função social da propriedade. Mesmo porque essa realização, uma vez descumprida pelo proprietário sua obrigação perante a coletividade, deve ficar a cargo do Poder Público, que tem o poder coercitivo, e não de particulares. Daí a impertinência das invasões de terra promovidas por alguns movimentos sociais, especialmente o MST (Movimento dos Sem-Terra), que importam na configuração de uma situação de beligerância incompatível com o Estado Democrático de Direito.
Cuida-se de instituto consagrado no ordenamento jurídico, podendo ser definido como o procedimento pelo qual o Estado, em virtude do seu poder de Império, retira do particular a sua propriedade, compulsoriamente, mediante o pagamento de indenização justa e prévia. Vislumbra-se flagrante supremacia do interesse público sobre o particular [37].
Pode ser fundada em utilidade pública, interesse público ou interesse social, sendo que a distinção entre utilidade e necessidade pública, com o advento do Decreto-Lei n.º 3.365/41, tornou-se meramente acadêmica, uma vez que o referido diploma legal unificou essas duas modalidades. No tocante ao cumprimento da função social da propriedade, interessa-nos a desapropriação com fulcro no interesse social. Este está estritamente relacionado às camadas mais necessitadas da população, no que concerne à melhoria das condições de vida, à eqüitativa distribuição das riquezas e à atenuação das desigualdades sociais.
Cabe ser consignado, desde logo, que os bens expropriados nesses moldes não têm como destino o patrimônio da Administração Pública [38], mas, sim, de terceiros, particulares, que estejam em condições de empregarem à propriedade a ambicionada função social. A introdução da desapropriação por interesse social no direito pátrio, aliás, ocorreu na Constituição Federal de 1946, forte no princípio da função social.
Existem três fundamentos constitucionais para a desapropriação por interesse social: a) art. 5º, XXIV, que é o poder geral de desapropriar, disciplinado pela Lei n.º 4.132/62; b) art. 182, que trata da propriedade urbana descumpridora dos requisitos da função social, previstos no Plano Diretor. Antes da utilização desse artifício, devem ser tomadas duas medidas: o parcelamento ou edificação compulsória, ou, restando infrutífero esse remédio, a tributação do IPTU progressiva no tempo. É notório o caráter sancionatório, uma vez que o pagamento da justa indenização é efetivado pela emissão de títulos da dívida pública resgatáveis em até dez anos; c) art. 184, que dispõe acerca da desapropriação para fins de reforma agrária, que recai sobre a propriedade rural. Também pode ser percebida a índole punitiva, visto que o pagamento da indenização é por intermédio de títulos da dívida agrária, resgatáveis em até vinte anos.
As hipóteses de desapropriação-sanção, ou seja, aquelas em que a indenização pela perda da propriedade é efetivada com o pagamento em títulos, incidem, obrigatoriamente, sobre a propriedade descumpridora da função social. Nesses casos, a intervenção estatal funciona como punição pela inobservância de preceito constitucional.
A outra hipótese de desapropriação por interesse social, que é a prevista pelo art. 5º, inciso XXIV, da Carta Política, a qual a doutrina faz referência como poder geral de desapropriar [39], não recai necessariamente sobre a propriedade que não atende à finalidade social. Mesmo assim, a função social é a ela inerente, mesmo porque o princípio em análise inspirou o legislador a inserir a desapropriação por interesse social em nosso ordenamento jurídico, precisamente na Constituição Federal de 1946.
Ocorrendo uma das hipóteses de desapropriação-sanção, pode o proprietário, como meio de defesa, provar que o seu bem está cumprindo os requisitos apontados no texto constitucional, sendo o seu domínio, dessa forma, merecedor da tutela do ordenamento jurídico. Por outro lado, se a desapropriação desenrolada for aquela regulamentada pela Lei n.º 4.132/62, ou seja, o poder geral de desapropriar, a defesa do expropriada é bem menos ampla, pois a expropriação nesses casos, em regra, é compulsória.
Considerações Finais
A conceituação do direito de propriedade evoluiu através dos tempos, deixando ele de ser apenas condicionado à individualidade do proprietário. Não pode esse direito ser exercido de maneira absoluta, egoística, mas, sim, com o objetivo de atender não apenas aos interesses do proprietário, como também de toda a coletividade. Por essa razão, é sustentada a existência de interesses não-proprietários, que devem ser considerados e respeitados. Esse princípio, cabe ser frisado, impõe ao proprietário não apenas a obrigação de se abster, de não violar uma regra, mas também de fazer, isto é, utilizar a coisa em conformidade com os anseios coletivos. Porém, a função social, embora ambicionada por toda a coletividade, deve ser efetivada de forma imperativa apenas pelo Estado, por intermédio do instituto da desapropriação. É inconcebível que particulares busquem, com invasões, dar a determinado imóvel a função social.
A função social da propriedade não se resume apenas à equilibrada divisão dos bens, mas também a outros direitos inerentes à construção de uma sociedade mais justa, que é o objetivo de toda a coletividade. Por isso não pode ser deixada em segundo plano a questão ambiental, que é atinente a todos os indivíduos, detentores do direito de viver em um meio ambiente saudável e equilibrado, em condições, enfim, de propiciar uma vida digna ao ser humano. De nada adianta uma propriedade ser extremamente produtiva sob o ponto de vista econômico se a atuação do proprietário enseja a devastação da ecologia. Tal situação implicaria um custo social extremamente indesejável, mesmo porque a Constituição Federal assegura a todos o direito de viver em um meio ambiente equilibrado.
Da mesma forma, o desrespeito às leis trabalhistas, como é o caso, por exemplo, do trabalho escravo, também implica inadequação do imóvel à finalidade social.
A Constituição Federal de 1988, nesse aspecto, representou vitais modificações no ordenamento jurídico pátrio, sendo imprescindível uma leitura do Direito Civil, especialmente no que tange ao direito de propriedade, com lentes constitucionais.
Mesmo assim, jamais pode ser esquecido que a propriedade continua sendo privada e, portanto, deve ser respeitada. Tanto é assim que o proprietário, mesmo tendo seu bem desapropriado pela Administração em decorrência da inobservância da finalidade social preceituada, tem direito a receber uma indenização, justa e prévia, segundo o texto constitucional, pela perda da propriedade. Havendo arbitrariedade estatal, há medidas judiciais cabíveis para a defesa do direito de propriedade.
REFERÊNCIAS
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NOTAS
01 GOMES, Orlando. Direitos reais. Atualização de: Luiz Edson Fachin. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
02 GUEDES, Jefferson Carús. Função social das "propriedades": da funcionalidade primitiva ao conceito atual de função social. In: ALVIM, Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes de Cerqueira; ROSAS, Roberto (coord.). Aspectos controvertidos do novo código civil: escritos em homenagem ao Ministro José Carlos Moreira Alves. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003.
03 GOMES, 2004.
04 WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Tradução de: A. M. Botelho Hespenha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980.
05 DUGUIT apud GOMES, 2004, p. 126.
06 RIZZARDO, Arnaldo. Direito das coisas: de acordo com a Lei n.º 10.406, de 10.01.2002. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
07 Ibidem, p. 177.
08 Ibidem., p. 177.
09 Ibidem, p. 178.
10 RIZZARDO, 2004, p. 178.
11 GONDINHO, André Osório. Função Social da Propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
12 Ibidem.
13 TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
14 TEPEDINO, 2004.
15 GONDINHO, 2000.
16 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n. 33, jul. 1999. Disponível em:
17 GONDINHO, 2000.
18 TEPEDINO, 2004.
19 Ibidem.
20 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
21 TEPEDINO, 2004.
22 HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
23 SÉGUIN, Elida. Estatuto da cidade: promessa de inclusão social, justiça social. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 143.
24 SÉGUIN, 2002.
25 TEPEDINO, 2004.
26 Marco Aurélio S. Vianna firmou posição em sentido contrário, isto é, entende que o princípio da função social interfere apenas no exercício do direito de propriedade, e não em seu conteúdo. Tal entendimento ainda é acompanhado por parte da doutrina, embora minoritária. (VIANNA, Marco Aurélio S. Comentários ao novo código civil, volume XVI: dos direitos reais. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
27 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988: interpretação e crítica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 251, grifo do autor.
28 PERLINGIERI apud TEPEDINO, 2004.
29 GONDINHO, 2000.
30 TEPEDINO, 2004.
31 GRAU, 1991.
32 COMPARATO apud GRAU, 1991.
33 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: direitos reais. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003, v. 5, p. 157.
34 TEPEDINO, 2004, p. 317.
35 FACHIN, Luiz Edson. Apreciação crítica do código civil de 2002 na perspectiva constitucional do direito civil contemporâneo. Revista Jurídica. v. 51, n. 34, p. 17–22, fev. 2003.
36 LÔBO, 1999.
37 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo, Atlas, 2004.
38 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
39 MELLO, 2002.