sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Para relatora da ONU, legado da Copa ainda é secundário em Porto Alegre


Visita da relatora da ONU para o direito à moradia incluiu duas comunidades que serão removidas pelas obras da Copa do Mundo de 2014 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Vivian Virissimo
Em visita a Porto Alegre nesta quinta-feira (18) para conhecer a situação das comunidades que serão afetadas pelas obras da Copa do Mundo de 2014, a relatora especial das Nações Unidas para o direito à moradia, Raquel Rolnik, concluiu que um legado socioambiental está longe de ser consolidado em Porto Alegre, já que na maioria dos casos há apenas projetos anunciados pela prefeitura e pelo governo estadual. “A construção de um legado não se apresenta como a questão mais importante, ainda se mostra uma questão secundária”, disse a urbanista, ressalvando que Porto Alegre ainda tem a chance de criar modelos de modernização da cidade que sirvam de exemplo para o Brasil.
Raquel teve audiências com o prefeito José Fortunati e com o governador Tarso Genro, e conheceu a realidade das famílias da Vila Dique, removidas pela expansão do Aeroporto Salgado Filho, e da Ocupação 20 de novembro, que dará lugar ao complexo do Beira-Rio. Ao final do dia de trabalho, a urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP conversou com os jornalistas em uma ocupação urbana transformada em moradia para dezenas de famílias, no centro da cidade.
Na avaliação de Raquel, a disponibilidade de recursos para a Copa do Mundo poderia resultar no cumprimento de propostas históricas como a regularização e urbanização das comunidades, mas há uma inversão de prioridades. “As intervenções da Copa do Mundo estão diretamente ligadas à execução do evento em si: chegar do aeroporto ao estádio, chegar do aeroporto aos hotéis e dos hotéis ao estádio. Essa é a agenda e não de construção de um legado socioambiental”, criticou.
Raquel afirmou que a ampliação do Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, resultou na remoção das famílias da Vila Dique de forma irregular, sem a finalização das novas moradias e sem a conclusão de escolas e postos de saúde. “Eu não vejo nenhum sentido da questão da moradia não ter a mesma importância da construção de um aeroporto. Direito à moradia se trata de um direito humano. Andar de avião não é um direito humano”, defendeu a urbanista.
Raquel Rolnik criticou o processo de reassentamento das famílias para a Nova Vila Dique, sem a finalização de todas as moradias e sem a conclusão de escolas e postos de saúde | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Porto Alegre ainda tem uma chance
Mesmo considerando que o legado para as cidades ainda é uma questão em segundo plano, a relatora disse que a situação ainda pode ser revertida. “Ainda temos três anos, há tempo para uma agenda e uma pauta de construção de um legado socioambiental, mas a cidade e os cidadãos têm que despertar, mesmo porque não existe nenhum impedimento para que isso possa acontecer”, apontou.
Raquel Rolnik citou os exemplos do Morro Santa Tereza e da avenida Tronco, que dará acesso ao estádio Beira-Rio, como casos que podem resultar em projetos importantes para a cidade. A prefeitura projeta o reassentamento das famílias que moram na avenida Tronco nas imediações da comunidade, utilizando terrenos ociosos do local sem realocar as famílias em pontos isolados da cidade. O caso do Morro Santa Tereza, que é de propriedade do Estado, também poderá resultar num caso de regularização fundiária sem excluir os moradores pobres para outros locais da cidade. “Esses dois projetos jogam um paradigma para o Brasil e para o mundo de que as coisas não são excludentes. É possível fazer este evento de uma outra forma”, defendeu a urbanista, ressalvando que, por enquanto, há apenas anúncios por parte do poder público.
A relatora da ONU para o direito à moradia conversou com moradores da Nova Vila Dique, que deixaram as imediações do aeroporto para um loteamento em Porto Alegre | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Se estas duas medidas forem efetivadas, será a oportunidade de Porto Alegre dizer para o Brasil e para o Mundo que aqui o modelo não é esse, que aqui o modelo é de construir um legado, melhor e includente, de uma cidade heterogênea, múltipla, que pode conviver distintos grupos sociais, inclusive na suas áreas mais valorizadas”, defendeu.
Raquel enfatizou que as construções na Copa são dominadas pelo capital corporativo e pelo segmento imobiliário, que transformam os aspectos centrais das cidades-sede, mas criam espaços excludentes. Segundo ela, é preciso construir uma plataforma que não é somente de moradia, mas de um legado socioambiental e de direitos humanos. “São várias agendas, vários atores que também podem se somar no sentido de garantir transparência e controle dos gastos públicos, direito à informação pública, controle social e a proteção dos direitos trabalhistas das obras, entre outras”.
Ela comparou Porto Alegre com outras cidades da Copa que já visitou enquanto relatora da ONU, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo e Fortaleza e considerou que a situação na capital gaúcha é diferente. “Aqui em Porto Alegre não vi famílias receberam cheque de 3 mil para sair dos locais, nem a pintura de casas de moradores sem nenhum tipo de comunicação prévia ou o caso de uma moradia que foi derrubada com a pessoa dentro pela máquina de uma empreiteira registrado no Rio de Janeiro”, exemplificou.
Raquel Rolnik esteve na ocupação 20 de Novembro, próxima ao estádio Beira-Rio, cujo complexo será ampliado | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Segundo Raquel, o que se assemelha em todas as cidades-sede é o caráter de desinformação das comunidades atingidas. “Alguns temas se repetem em todos os lugares, como por exemplo, a questão muito importante que é a informação. Mesmo tendo um diálogo da prefeitura com as lideranças, nem sempre a informação chega nas comunidades. Todos precisam ser informados.”
Raquel ressaltou a importância de que seja estabelecido um pacto federativo de comportamento em relação à Copa, envolvendo municípios, Estados e governo federal. Segundo ela, a iniciativa poderia partir do Rio Grande do Sul. “Porto Alegre é um lugar com tradição no processo de construção democrático participativo, por isso é uma cidade para sair na frente para trazer um protocolo mesmo não envolvendo o governo federal, contemplando as comunidades diretamente atingidas e as organizações de direitos humanos”, disse.
Em dezembro, a relatora encaminhou uma Carta de Alegação ao governo brasileiro com as denúncias de irregularidades apontadas em dossiês elaborados pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. Segundo Raquel, até hoje o governo brasileiro não respondeu de forma satisfatória. Agora, a relatora deverá elaborar um segundo comunicado até o final de setembro, que será encaminhado novamente para o governo federal.
“Fifa é uma máquina de corrupção”
A representante das Nações Unidas afirmou ainda que existe um protocolo firmado entre governo federal e a FIFA, mas a relatoria não tem acesso ao documento. “A FIFA é uma caixa preta, um máquina de corrupção e de favorecimentos individuais e corporativos, isso não é a relatoria que está afirmando, está na imprensa internacional há vários meses”.
"O mais perigoso são os acordos paralelos que a Fifa faz com cada uma das cidades-sede, com suas prefeituras" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Começa a se constituir um Estado de exceção, a ideia de que em nome da Copa é possível passar em cima de direitos, de leis, e constitui uma espécie de Estado paralelo, um Estado de emergência que apenas diante de catástrofes e conflitos os países acabam decretando para que as coisas possam acontecer. É o que aconteceu na Africa do Sul, é o que começa a acontecer no Brasil através de decretos e medidas provisórias”, alertou.
“Mas o mais perigoso são os acordos paralelos que a Fifa faz com cada uma das cidades-sede, com suas prefeituras. Esse é ainda mais secreto, com uma série de ingerências que foram percebidas em cidades da África do Sul. Coisas que não estavam no protocolo geral e que a FIFA foi negociando com as cidades, numa espécie de terrorismo promovido pela entidade. A FIFA é um grande perigo e a relatoria espera que esses acordos paralelos não aconteçam com as cidades brasileiras”.

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