O Globo - 14/01/2011
‘No lugar dos valores da vida, preferiu-se o poder, o sucesso e a riqueza por si mesmos’ (Freud, 1930)
Quem analisa o século passado, da urbanização mundial, encontra um traço profético nessa afirmação do ‘pai da psicanálise’. No Brasil, o desenvolvimento econômico também tem se baseado na exacerbação da cultura individualista e na degradação da esfera pública. Mas não há progresso real se não se supera a desigualdade e o atraso político. Nesses aspectos essenciais continuamos mal.
Entre nós, onde os 10% mais ricos ainda ganham 40 vezes mais que os 10% mais pobres, o abismo social ganha tom de tragédia: enlutados, vejamos a condição da maioria absoluta dos vitimados nas enchentes de verão.
Não se culpe o destino ou uma fatalista ‘ira divina’ e sim a falta de prioridade para políticas públicas que poderiam amenizar essa dor indizível. Não se atribua tudo a fenômenos naturais, alguns de fato inéditos. O imprescindível planejamento urbano raramente desce de virtuosas Leis Orgânicas, Planos Diretores e Estatuto das Cidades para a vida. Os insuficientes investimentos em macro-drenagens, contenções e programas habitacionais contrastam com os custos adicionais bilionários da reforma do recém-reformado Maracanã, por exemplo. No plano global, as políticas contra o aquecimento, que implicariam em mudanças drásticas do nosso modo de produzir e consumir, não avançam com a celeridade das crescentes oscilações climáticas.
O país emergente que celebra crescimento tem sua dimensão política soterrada pela avalanche do interesse menor, alimentado pela enchente do desinteresse coletivo. A comovente e episódica onda de solidariedade não tem conseguido transformar-se em torrente cidadã permanente. Promessas de prevenção das autoridades vão embora com as águas de março ou fecham-se após as chuvas de abril.
Ocupar função pública, salvo exceções, não é mais missão de serviço e sim carreira promissora, inclusive com plano de vencimentos e oportunidades de negócios alentadores. Muitos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário distanciam-se da sociedade, fechados em estamentos que se auto-regulam e tornam-se espaço de interesses privados. A moeda de troca nas alianças políticas é a distribuição de cargos e empenhos para consolidação dos ‘currais’ modernos de legitimação pelo voto – até nos recursos para a Defesa Civil! Os palácios só costumam ter alguma conexão com as praças quando ocorrem tragédias ou nos períodos bienais de captação de votos. Hannah Arendt lembrava que “a sociedade burguesa, baseada na competição e no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia”.
Desde os primórdios os povos enfrentam dois desafios: adequar-se à natureza, para não perecer, e limitar o poder, para as maiorias não serem escravizadas por poucos. Caminhamos entre intenções cruzadistas e suas guerras nada santas, entre avanços tecnológicos que propiciariam o bem viver e relações de dominação que excluem amplos setores desses benefícios.
É imperativo o resgate da vida pública cooperativa, transparente, participativa. Res publica livre do interesse mercantil e/ou demagógico – inclusive em relação ao solo urbano. As centenas de mortes que se repetem a cada ano nos interpelam de forma dramática.
Chico Alencar é professor de História e deputado federal (PSOL/RJ).
Publicado em O Globo em 14/01/2010
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