sábado, 23 de junho de 2012

MNLM participa de ato contra a remoção das famílias da Vila Autódromo


http://reformaurbanars.blogspot.com.br/2012/06/mnlm-participa-de-ato-contra-remocao.html

A Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo- AMPAVA em parceria com o Movimento Nacional de Luta pela Moradia – MNLM e diversos movimentos sociais que participam da Cupula dos Povos, realizaram hoje (20/06) pela manhã um grande Ato Contra a Remoção das Famílias da Vila Autódromo. O MNLM participou em peso hoje da grande manifestação em defesa dos direitos desta comunidade ameaçada de despejo, por conta da pressão da Especulação Imobiliaria e dos megaprojetos das obras da Copa do Mundo e das Olimpiadas. O Movimento esteve presente na comunidade deste a noite de segunda-feira, dialogando com os moradores e mobilizando para o ato em apoio a esta luta de mais de 40 anos pelo direito a moradia digna. Na noite de terça-feira cerca de 300 pessoas se somaram a vigilia na comunidade.

As famílias conquistaram a posse da área em 1992 através da CDRU- Concessão do Direito Real de Uso, também em 2005 a área foi declarada Área Especial de Interesse Social, conquistas que deveriam garantir a permanência das mais de 900 famílias no local. Mas apesar destas conquistas, neste momento as famílias sofrem mais uma tentativa de despejo forçado por parte dos governos que ignoram os direitos do Povo e querem entregar a área para a iniciativa privada construir condomínios de luxo.

O MNLM solidariza-se a comunidade e realiza um trabalho em parceria para garantia do direito a moradia, pois a luta da Vila Autódromo é hoje um símbolo da luta contra as violações de direitos que estão ocorrendo em diversas partes do Brasil e do Mundo onde em nome do desenvolvimento acabam expulsando comunidades e potencializando os processos de especulação imobiliária.





Participantes da Rio+20 fazem ato por comunidade ameaçada de remoção no RJ

Mais de mil integrantes de movimentos sociais e ONGs brasileiros e estrangeiros que participam da Cúpula dos Povos – evento paralelo à Rio+20 – foram até a comunidade da Vila Autódromo, zona oeste da cidade, e, com seus moradores, fizeram um ato em sua defesa nesta quarta-feira (20). O motivo alegado para a remoção são as obras viárias e o Parque Olímpico na região, de modo a adequar a infraestrutura local aos Jogos Olímpicos de 2016.

Rio de Janeiro - Seu Lúcio tem 84 anos, 22 dos quais vividos na Vila Autódromo, comunidade da baixada de Jacarepaguá, zona oeste do Rio de Janeiro. Sua vida está toda ali. Amigos, família, trabalho. Ele é estufador: trabalha consertando poltronas e sofás. Atualmente, no entanto, ele se sente como vivendo “numa balança”.

Pois sua casa, assim como toda a comunidade, sofre a ameaça de ser removida pelo poder público. O motivo alegado é a necessidade da realização de obras viárias e o Parque Olímpico na região, de modo a adequar a infraestrutura local aos Jogos Olímpicos de 2016. Os moradores da Vila Autódromo, estudiosos e advogados que o apoiam, porém, dizem que o evento esportivo é apenas um pretexto; segundo eles, a verdadeira intenção é atender os interesses do setor imobiliário.

Como isso em mente, mais de mil integrantes de movimentos sociais e ONGs brasileiros e estrangeiros que participam da Cúpula dos Povos – evento paralelo à conferência oficial – foram até a comunidade e, juntamente com seus moradores, fizeram um ato em sua defesa nesta quarta-feira (20). O objetivo era denunciar a desterritorialização dos povos em todo o mundo. Aproveitaram para questionar as “falsas soluções” apresentadas pelo Rio+20 - Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, que começou em 13 de junho e vai até dia 22.

Movimentos indígenas, camponeses, quilombolas, de mulheres, de luta por moradia, assim como entidades de defesa de direitos desses grupos chegaram em diversos ônibus, que saíram de vários pontos do centro carioca. Com muita música, cantos e batuques, os manifestantes se juntaram aos moradores da Vila Autódromo e caminharam pelas ruas de terra da comunidade. Em seguida, tentaram se dirigir rumo ao Rio Centro – local de convenções onde acontece a cúpula oficial –, mas foram impedidos de prosseguir por uma forte barreira policial.

Um grupo grande de indígenas de todo o país que insistia em entrar no Rio Centro conseguiu que o ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, comparecesse ao local para negociar. Após alguns minutos de conversas com o líder caiapó Raoni, ficou acordado que o ministro receberia na cúpula oficial 12 lideranças indígenas. O encontro estava previsto para acontecer às 15 horas desta quarta. Entre as reivindicações dos indígenas, estavam incluídas a interrupção das obras de Belo Monte, a demarcação de terras e questões relacionadas à saúde e educação.

Durante o ato, podia-se ouvir gritos de guerra e músicas contra o capitalismo e a chamada economia verde. “Capitalismo é um horror! Destrói a vida, a natureza e o amor!” e “O povo unido, organizado, não precisa de polícia nem Estado” eram algumas das palavras de ordem. Já os indígenas entoavam músicas contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte.

Sobre o asfalto foram colocadas quatro grandes faixas que formavam a frase: “Vila Autódromo resiste há 40 anos”. “Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci...” era uma das músicas entoadas pelos manifestantes. Outra faixa dizia: “Remoção não é sustentabilidade”.

Localizada ao lado do autódromo do Jacarepaguá, muito utilizado até os anos 1980 para a etapa brasileira do campeonato de Fórmula 1, a Vila Autódromo abriga cerca de 4 mil pessoas em casas simples de alvenaria e ruas sem pavimentação. Segundo Eliomar Coelho, vereador carioca pelo Psol, a remoção da comunidade não é tão simples de ser executada, pois seus moradores teriam o título de uso, o que daria a eles o direito real de uso do terreno por 99 anos. Assim mesmo, a pressão continua grande. “A prefeitura do Rio fez uma grande articulação entre os grandes interesses econômicos, os governos das três esferas [federal, estadual e municipal] e a mídia. Então, é um poder de fogo enorme. Mas a população da comunidade está devidamente mobilizada. Cada morador vem ganhando consciência sobre seus direitos”.

Um exemplo disso é Jane Nascimento, de 56 anos, diretora-social da Associação dos Moradores e Pescadores de Vila Autódromo (AMPVA), que atua organizando a população local para resistir à remoção. Ela afirma que, embora muitos moradores estejam criando coragem, a mobilização não é fácil. “A Secretaria de Habitação do município vive querendo seduzir o povo, oferecendo ajuda social. Mas, sutilmente, avisa que se a pessoa não sair por bem, terá que sair do mesmo jeito.” Como alternativa, diz, o poder público promete o cadastramento no Programa Minha Casa Minha Vida, “para o povo adquirir dívida”.

Para demonstrar que a Vila Autódromo é viável socialmente, ambientalmente e urbanisticamente, a AMPVA, juntamente com o Núcleo Experimental de Planejamento Conflitual (ETTERN/IPPUR/UFRJ), elaboraram o “Plano Popular da Vila Autódromo”, que propõe a urbanização da comunidade como alternativa mais barata do que a remoção. O projeto engloba planos para os setores habitacional, educacional, ambiental, cultural, de saneamento, economia local e transporte. “A implementação desse plano pode tornar a Vila Autódromo um modelo de integração urbanística e ambiental de uma comunidade, em consonância com o discurso de sustentabilidade que é o centro da Rio+20. Tecnicamente, não existe razão para a remoção, pois apresentamos soluções para todas as áreas”, explica Regina Bienenstein, coordenadora do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das elaboradoras do plano.

É tudo que seu Lúcio quer: permanecer onde vive há mais de duas décadas. “Conheço todo mundo, gosto daqui. É muito bom aqui, nem ponto de bicho tem”. Observando com atenção a mobilização, ele comenta: “Espero que isso toque o coração desse pessoal que só pensa em dinheiro. As grandes empresas que querem fazer apartamentos. Não é por causa dos Jogos Olímpicos que querem tirar a gente daqui, é por causa da especulação imobiliária”.
Fotos: Arquivo

terça-feira, 12 de junho de 2012

Questão urbana ganha espaço semanal na Carta Maior

A Carta Maior acaba de inaugurar em seu portal uma seção semanal para discutir temas relacionados à questão urbana. O espaço está sendo coordenado pela professora Ermínia Maricato, que abre a seção com o artigo “Cidades-Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional”, que reproduzo abaixo.

Cidades-Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional

Enchentes, desmoronamentos com mortes, congestionamentos, crescimento exponencial da população moradora de favelas (ininterruptamente nos últimos 30 anos), aumento da segregação e da dispersão urbana, desmatamentos, ocupação de dunas, mangues, APPs (Áreas de Proteção Permanente) APMs (Áreas de Proteção dos Mananciais), poluição do ar, das praias, córregos, rios, lagos e mananciais de água, impermeabilização do solo (tamponamento de córregos e abertura de avenidas em fundo de vales), ilhas de calor… e mais ainda: aumento da violência, do crime organizado em torno do consumo de drogas, do stress, da depressão, do individualismo, da competição. As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A questão urbana ocupa espaço prioritário na agenda política nacional. Certo?
Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional.
As conquistas institucionais nos anos recentes não foram poucas: promulgação do Estatuto das Cidades, aprovação dos marcos regulatórios do saneamento, dos resíduos sólidos, da mobilidade urbana, aprovação de uma enxurrada de Planos Diretores, criação do Ministério das Cidades, retomada das políticas de habitação e saneamento após décadas de ausência do Estado. No entanto, a crise urbana está mais aguda do nunca. Por que?
Numa sociedade persistentemente desigual as cidades não poderiam expressar o contrário. Mas há algo nas cidades que é central e ignorado. Trata-se do poder sobre o “chão”, ou seja, o poder sobre como se dá a produção e a apropriação do espaço físico. De todas as mazelas relacionadas acima, a primeira parte tem a ver com o “espaço urbano” ou com as formas de uso e ocupação do solo, essa evidência que nos cerca no cotidiano das cidades, mas que está oculta para Estado e sociedade. Assim como no campo, a terra urbana (pedaço de cidade) é o nó na sociedade patrimonialista.
A importância do espaço urbano como ativo econômico e financeiro escapa à percepção da maior parte dos urbanistas, engenheiros e economistas no Brasil (exceto dos que trabalham para o capital imobiliário). O valor da terra e dos imóveis varia de acordo com as leis ou investimentos realizados nas proximidades. Poderosos lobbies atuam sobre os orçamentos públicos dirigindo os investimentos e os destinos das cidades. Trata-se do que os americanos, Logan e Molotch, chamaram de “máquina do crescimento”: a reunião de interessados na obtenção de rendas, lucros, juros e… recursos para o financiamento de campanhas, acrescentamos nós. O planejamento urbano é o fetiche que encobre o verdadeiro negócio. É comum que um conjunto de obras contrarie o Plano Diretor. O mais frequente é vermos obras sem planos e planos sem obras.
O governo federal retomou as políticas de habitação e saneamento e se propõe a retomar a política de mobilidade urbana após décadas de ausência promovida pelo ideário neoliberal. Mas a retomada desses investimentos sem a reforma fundiária e imobiliária urbana (de competência municipal) traz consequências cruéis como a explosão dos preços dos imóveis. Durante os 50 anos em que urbanistas e movimentos sociais defenderam a Reforma Urbana, a exclusão territorial foi foi reinventada pelos que lucram com a cidade como ocorreu durante o período do BNH.
Ao contrário de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente equilibrado, um dinâmico crescimento imobiliário reproduz características históricas de desigualdade e predação ambiental que, somadas ao grande número de carros que entopem a cada dia os sistemas viários, apontam para um rumo de consequências trágicas. Este tema deveria ocupar um lugar central na Rio +20.
Pesquisas recentes da USP ampliaram o conhecimento sobre o número de patologias causadas, na RM de São Paulo, pela poluição do ar, do som, ou pelos congestionamentos de tráfego: doenças cardíacas, transtornos mentais, ansiedade, depressão, estresse. O tempo médio das viagens diárias está próximo das 3 horas, sendo que para um terço da população passa disso. 30% das famílias são chefiadas por mulheres que após a jornada de trabalho chegam em casa e têm que dar conta dos filhos e do serviço doméstico. Tanto sofrimento exigiria repensar a prioridade dada ao automóvel em detrimento do transporte coletivo. Deve haver outras formas de criar empregos e aumentar o PIB sem gerar tal irracionalidade (do ponto de vista social e ambiental) urbana.
Os megaeventos (Copa, Olimpíadas) acrescentam alguns graus nessa febre. Por isso, os despejos de comunidades pobres que estão (e sempre estão) no caminho das grandes obras está ganhando dimensões não conhecidas até agora.
Embora a agenda social tenha mudado nos últimos 9 anos favorecendo ex-indigentes e miseráveis (bolsa família, pró-uni, crédito consignado, aumento do s.m.), embora as obras urbanas se multipliquem a partir do PAC e do MCMV, ambos por iniciativa do governo federal, as cidades pioram a cada dia.. Distribuição de renda não basta para termos cidades mais justas, menos ainda a ampliação do consumo pelo aumento do acesso ao crédito. É preciso “distribuir cidade”, ou seja, distribuir terra urbanizada, melhores localizações urbanas que implicam melhores oportunidades. Enfim, é preciso entender a especificidade das cidades onde moram mais de 80% da população do país e representam algumas das maiores metrópoles do mundo.
A Carta Maior ofereceu um espaço semanal para dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber na agenda política nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana.
Para seguir a trilha do desenvolvimento urbano, e não apenas crescimento urbano, revertendo o rumo atual, há conhecimento técnico, há propostas, há planos, há leis e até mesmo experiência profissional acumulada no Brasil. Ainda que no espaço de uma sociedade do capitalismo periférico ou “emergente”, como quer o main stream, é possível diminuir um pouco as selvagens relações sociais, econômicas e ambientais que vivemos nas cidades. Antes de apresentar propostas, que são rapidamente repetidas para serem também rapidamente esquecidas, é preciso mostrar porque a formulação de propostas, planos e leis não bastam. A questão é essencialmente política. É preciso mostrar a lógica do caos aparente, ou seja, a lógica dos que ganham com tanto sofrimento e suposta irracionalidade. As próximas eleições se referem ao poder local, ao qual cabe a competência sobre o desenvolvimento urbano de acordo com a Constituição Federal. Esperamos colaborar para diminuir o analfabetismo urbanístico e cobrar dos candidatos a prefeitos e vereadores maior conhecimento e compromisso com a justiça urbana.
(*) Erminia Maricato, arquiteta-urbanista, professora titular aposentada da FAU USP e professora da UNICAMP, é responsável por esta seção.

 http://raquelrolnik.wordpress.com/2012/06/12/questao-urbana-ganha-espaco-semanal-na-carta-maior/

sábado, 9 de junho de 2012

SÃO PAULO
Itaquera, muito além da Copa do Mundo
A escolha de Itaquera como sede da abertura de um dos eventos midiáticos mais importantes do mundo pode ser entendida como uma homenagem simbólica aos habitantes do bairro e, contraditoriamente, como o ponto culminante dos processos de valorização fundiária, os quais se desdobrarão na expulsão dessa mesma população
por Tiarajú D'Andrea


(Copa referenda o processo de apagamento do passado operário e nordestino de Itaquera)
Desde que foi anunciada a construção do estádio do Corinthians no bairro de Itaquera, em São Paulo, em setembro de 2010, o local virou assunto e centro das atenções mundiais. Nunca antes a região teve tanta visibilidade. No entanto, a exposição midiática não tem levado em consideração muitos aspectos da história de Itaquera.
A trajetória do bairro é antiga. Foi no longínquo ano de 1620 que surgiram algumas das primeiras referências à denominada Roça Itaquera, situada nos limites do Aldeamento de São Miguel. Dois séculos e meio se passaram até o acontecimento que moldou o desenvolvimento econômico da região: a inauguração da estação de trem de Itaquera, em 1875, pelo ramal da Central do Brasil. O impacto da chegada da estrada de ferro foi enorme, propiciando o transporte de seus moradores a outras regiões e das mercadorias produzidas em Itaquera para o Centro de São Paulo. Foi também ao redor da estação que se consolidou um pujante centro comercial.
A partir da década de 1920, imigrantes japoneses passaram a residir nas glebas rurais existentes na região. A principal atividade econômica dessas famílias era a produção de pêssegos em uma extensa área circundante à Mata do Carmo.
No transcorrer do século XX, processos econômicos foram aos poucos substituindo as áreas de roçado por vilas e loteamentos. Grandes levas populacionais provindas sobretudo da região Nordeste assentavam-se em Itaquera, atraídas pelos terrenos baratos e pela estação de trem, que possibilitava o deslocamento até o Centro.
De fato, o ambiente semirrural da região configurou-se como uma reserva de terras a serem incorporadas nos circuitos periféricos de valorização, expressos nos loteamentos e vilas, cujos terrenos seriam vendidos para a população de baixa renda. Esse processo foi lento e ocorreu fundamentalmente entre as décadas de 1940 e 1970. No alvorecer da ditadura militar, Itaquera era um bairro periférico não consolidado,1 ou seja, com pouca infraestrutura urbana. Sua população era composta de operários e trabalhadores assalariados no comércio e no ramo de serviços. Grande parte dessa população pagava em parcelas o sonho da casa própria. Urbanisticamente, os terrenos vazios, produtos da especulação imobiliária, contracenavam com muitas ruas de terra e precariedade.
A ocupação de Itaquera nos moldes aqui apresentados ocorreu mais ou menos até a década de 1970. Foi nessa década também que surgiram as primeiras favelas da região. Contudo, a partir de 1980 ocorreu uma explosão demográfica potencializada principalmente por um fenômeno urbanístico e social que marcaria para sempre a história do bairro: a construção das Cohabs.

Chegam os conjuntos habitacionais
Inaugurada em 1980 pelo então ditador João Batista Figueiredo, a Cohab José Bonifácio localiza-se em um enorme terreno ao lado das já citadas plantações de pêssegos. Não é casual que o local escolhido para a introdução dos edifícios tenha sido distante da centralidade representada pela estação. Na tarefa de ligar urbanística e socialmente a Cohab à mancha urbana já existente, uma série de agentes lucrou: o dono da empresa de transporte; as empreiteiras e construtoras, contratadas para realizar obras de infraestrutura urbana; os pequenos e os grandes especuladores imobiliários, apostando na valorização dos vazios urbanos entre uma e outra região. Essa é a história da periferia, uma lógica da desordem2em que a ordem foi o lucro fácil de diversos setores que atuaram no filão da urbanização.
Em outro âmbito, cabe destacar que o beabá do planejamento urbano prevê que primeiro se instale a infraestrutura para depois os moradores habitarem determinado local. No entanto, devido à já citada ordem da desordem, em Itaquera ocorreu o contrário: primeiro chegaram as pessoas, depois a infraestrutura estatal e num terceiro momento a iniciativa privada, desejosa de auferir renda em uma localização valorizada pela intervenção estatal.3 Após a inauguração do primeiro conjunto habitacional, vários outros passaram a ser construídos.4 Os edifícios foram rapidamente povoados e a população pressionou o poder público por serviços essenciais como escolas, hospitais e postos de saúde, sendo em parte atendida, uma vez que até hoje a prestação de serviços públicos é deficitária. De certo, há toda uma construção social de apagamento da luta desses moradores por melhorias urbanas, e Itaquera foi e é um local fértil em lutas.

Mortes, apertos e lógica individualista
O esquecimento das lutas é também o esquecimento das mortes produzidas por esse modelo de urbanização. Em 1987, uma batida entre dois trens próximo à estação de Itaquera tirou a vida de mais de sessenta pessoas.Foi o maior acidente ferroviário da história de São Paulo. A causa: uma falha técnica, ocasionada pelo descaso do Estado brasileiro. As vítimas: trabalhadores, crianças, negros, nordestinos. Moradores da região. Pobres em geral. Aqueles que conformam uma massa sem vez, sem voz e sem possibilidade de contar sua própria história. Como síntese do episódio, no dia seguinte à tragédia os trens circulavam normalmente. São Paulo não pode parar. As engrenagens econômicas precisam seguir funcionando. A mão de obra barata da zona leste deveria apinhar-se na lata de sardinha e seguir sua marcha ao Centro. Aos mortos, nem um minuto de silêncio ou uma cruz na beira da via. A morte em massa no transporte foi apenas um acidente de percurso, silenciado e esquecido.
Na breve tentativa de periodização realizada por este texto, pode-se afirmar que a batida de trens ocorrida em fevereiro de 1987 foi o ponto máximo das precariedades de um bairro periférico não consolidadoque transitava para se transformar em um bairro periférico consolidado, ou seja, uma localidade com infraestrutura urbana.5
O principal fato que evidencia essa transição dos padrões de urbanização do local foi a chegada do metrô, em setembro de 1988, um ano e meio após a batida de trens. A inauguração da Estação Corinthians-Itaquera colocou o bairro em um patamar diferente no que tange à sua relação com o Centro de cidade, diminuindo, mas não resolvendo, o problema da segregação socioespacial. Por outro lado, a abertura da estação referendou Itaquera enquanto centralidade da zona leste.
Com a chegada do metrô, o bairro também passou a ser palco de uma contraditória política de investimentos em infraestrutura viária. Começava-se um processo de transformação local, com a tentativa de substituição da antiga população moradora por uma população de classe média baixa. Se décadas atrás o bairro havia vivido a transição de um ambiente semirrural para um bolsão de loteamentos periféricos, foi no final da década de 1990 que se referendou o processo de aquisição dos terrenos baratos da periferia consolidadapara inseri-los em circuitos mais elevados de valorização fundiária. Um novo projeto se impunha a Itaquera.
Em 1995, o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a Avenida Jacu-Pêssego, que atravessa o bairro de ponta a ponta; no ano 2000, foi inaugurada a linha de trem Itaquera-Guaianases, que serviu para desativar o trajeto da antiga estrada de ferro, tirando a linha férrea do centro do bairro e do local onde ocorreu a batida de trens. O trecho antigo foi abandonado por quatro anos, até que em 2004, por sobre seu traçado, foi inaugurada mais uma obra viária de grande porte: a Nova Radial Leste. Era um fato: o transporte individual havia sido priorizado em detrimento do transporte público. Nem a estação de trem de Itaquera se salvou. Enquanto tramitava o processo de tombamento da antiga estação, memória histórica do bairro, uma ação silenciosa da prefeitura a demoliu em 2004. Itaquera não tinha mais trem. Itaquera não tinha mais estação de trem. Aos poucos desaparecia tudo o que lembrava os pioneiros, os princípios, a raiz histórica do bairro. A memória era apagada. Uma outra história deveria ser contada...

A Nova Itaquera e o estádio da Copa
Como mencionado anteriormente,6 uma das faces da transformação de bairros da periferia é a chegada da iniciativa privada, desejosa de auferir lucro em localidades já beneficiadas com infraestrutura urbana. Ainda que vários padrões de urbanização existam de maneira concomitante em Itaquera, é evidente a ação de uma série de agentes visando à consolidação desse terceiro momento, que ocorre depois da chegada dos moradores e da introdução de infraestrutura urbana.
Como exemplo da “Nova Itaquera”, em 2007 foi inaugurado o Shopping Metrô Itaquera, explorando-se o potencial consumidor da população da região. No mesmo período, começou a ser inaugurada uma série de edifícios de médio padrão voltados à demanda da classe média baixa. Esses edifícios atraem os moradores de outros bairros interessados nos preços mais em conta que Itaquera oferece e atendem a uma parcela da população do bairro que ascendeu socialmente nos últimos anos. Dessa forma, é num momento histórico de transição e encarecimento do padrão de vida no bairro que é anunciada a construção do estádio do Corinthians, palco da abertura da Copa do Mundo.
Antes de propriamente discutir o evento, cabe fazer uma importante ressalva: o problema não é em si o estádio. O torcedor merecia um estádio próximo de sua residência, levando em conta que a zona leste é um reduto de corintianos. O fato de o Corinthians mandar partidas de futebol no Morumbi ou no Pacaembu só referendava a segregação socioespacial a que está submetido o morador/torcedor da zona leste. Definitivamente, o Pacaembu não fica próximo dessa população.
A questão principal é a forma como o estádio do Corinthians em Itaquera está sendo imposto. Nesse ponto, foi crucial a construção discursiva que efetuou o imbricamento entre a construção do estádio e a Copa, como se fossem elementos indissociáveis. A partir dessa costura, setores desejosos de que o Brasil sedie os jogos, principalmente pelos ganhos financeiros decorrentes, passaram a ter o apoio acrítico de um importante ator no cenário futebolístico − a torcida do Corinthians − e de um ator social cada vez mais importante: o morador da zona leste.
As armadilhas desses apoios são várias. Do ponto de vista futebolístico, a Copa vem sacramentar o cerco ao torcedor comum e ao torcedor organizado. Nos últimos anos, o futebol passa por um processo de elitização capitaneado por empresas televisivas e pelo aparato estatal jurídico-repressivo. Expresso no aumento cada vez maior do preço dos ingressos e na repressão generalizada às torcidas organizadas, vê-se um quadro perfeito para os que manejam o futebol como negócio: a elite e a classe média indo ao estádio, pagando caro, e os mais pobres em casa consumindo futebol via televisão, sem circular pela cidade e dando audiência às emissoras. Do ponto de vista do torcedor organizado, defender a Copa nesses termos é apoiar seu próprio fim.
Do ponto de vista urbanístico, os investimentos na região novamente priorizarão a lógica individualista expressa nas vias para automóveis, fundamentalmente ligando o estádio ao aeroporto. Para além da propaganda, essas obras em nada resolverão os problemas estruturais do bairro. Itaquera, assim como toda a zona leste, precisa de mais linhas de metrô, mas isso não foi levado em consideração pelos governantes.
Cabe lembrar também que as obras viárias e o parque linear previstos para a região pressupõem a retirada de 4.500 famílias moradoras de favelas. Como vem sendo prática na atual gestão municipal, não existe uma política de reassentamento dessas famílias na própria região. A questão das remoções é a pauta principal do Comitê Comunidades Unidas, que se organiza em Itaquera e exige do poder público uma política habitacional efetiva para essa população.
Levando em conta os planos apresentados pelas diferentes esferas governamentais, configura-se o seguinte cenário: obras viárias de grande porte e política habitacional privada. Ambos visam atender à classe média baixa em detrimento do investimento em moradia popular e metrô. Moradias populares garantiriam a permanência dos atuais moradores no bairro, e mais linhas de metrô são necessárias, uma vez que se sabe há muito tempo que transporte público de qualidade é a solução para São Paulo, e não avenidas.
De fato, o estádio poderia fazer parte de um projeto realmente sério de desenvolvimento da região, que beneficiasse os moradores também enquanto habitantes da cidade e trabalhadores, e não só em sua face torcedora. O problema do estádio é ele servir como catalisador de apoio a uma Copa que está longe de ser em benefício das classes populares. Pelo contrário, o evento referenda o processo social de apagamento do passado operário e nordestino do bairro de Itaquera. Cabe lembrar que não se é contra processos de urbanização e melhorias urbanas, mas a pergunta a ser feita é: de fato são intervenções que visam à melhoria das condições urbanas para os atuais moradores ou são intervenções pontuais que reatualizarão os processos de expulsão e segregação socioespacial?
Que Itaquera também seja daqueles que, com seu suor, história e lutas, edificaram o bairro. Grande parte dos moradores da região está sendo induzida por uma forte propaganda midiática a apoiar um projeto de cidade e sociedade que não é o seu. Desvelar esse equívoco contribui para que a população periférica formule seu próprio projeto. Para começar, o morador do bairro é quem deveria deter o naming rightsdo estádio, que poderia se chamar Mártires de Itaquera, em memória dos mortos de sua história.
Tiarajú D'Andrea
Morador de Itaquera e corintiano. Doutorando em Sociologia pela USP, é autor da dissertação de mestrado Nas Tramas da segregação: o real panorama da pólis, São Paulo, Departamento de Sociologia (FFLCH - USP), 2008.


Ilustração: Robson Ventura / Reuters
1 Os termos periferia consolidada e periferia não consolidada utilizados neste texto baseiam-se na conceituação efetuada por Haroldo Torres, “A fronteira paulistana”. In: Eduardo Marques e Haroldo Torres (orgs.), São Paulo: segregação, pobreza e desigualdades sociais, Editora Senac, São Paulo, 2005. Segundo o autor, periferia consolidada seriam os bairros da periferia de São Paulo com nível satisfatório de serviços públicos e de infraestrutura urbana (serviços de saúde e de educação, transporte público, asfaltamento, redes de água, esgoto e eletricidade, entre outros). Em contrapartida, a denominada periferia não consolidada (ou fronteira urbana) seria caracterizada pela precariedade da existência desses serviços. Outra grande diferença entre os dois padrões seriam as taxas de crescimento demográfico, médias no primeiro caso e altas ou altíssimas no segundo. Sobre o assunto, recomenda-se também o trabalho de Camila Saraiva, A periferia consolidada em São Paulo: categoria e realidade em construção, dissertação de mestrado em Planejamento Urbano e Regional (Ippur), Rio de Janeiro, 2008.
2 O termo lógica da desordem foi cunhado por Lúcio Kowarick em artigo homônimo publicado em 1979. Nele, o autor desvela o aparente caos existente no processo de urbanização da cidade de São Paulo. Para tanto, afirma que é a ordem da racionalidade capitalista, operada por distintos agentes e sem planejamento, que resultaria numa certa desordem urbana.
3 Este argumento se baseia no trabalho de Yvonne Mautner, “A periferia como fronteira de expansão do capital”. In: Csaba Deák e Sueli Shiffer (orgs.), O processo de urbanização no Brasil, Fupam/Edusp, São Paulo, 1999, p.245-259.
4 Sobre a introdução das Cohabs na zona leste de São Paulo, ver, entre outros, os trabalhos de Amélia Damiani, “A cidade (des)ordenada: concepção e cotidiano do Conjunto Habitacional Itaquera I”, tese de doutorado em Geografia (FFLCH-USP), São Paulo, 1993; Letícia Sigolo, “Conjunto José Bonifácio: discurso hegemônico e cantos residuais na produção do espaço urbano”, trabalho final de graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), São Paulo, 2006; e Tiarajú D’Andrea, “Distanciamentos geográficos e acercamentos humanos”, Divercidade, São Paulo, mar. 2008.
5 Cabe destacar que esses marcos temporais apenas indicam processos de mudanças que ocorrem de maneira lenta, assim como se deve esclarecer que esses padrões de ocupação coexistem no tempo.
6 Mautner, op. cit.
03 de Abril de 2012
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1155#.T9P3Suxqt5w.facebook  

Cidades-Urgente: colocar a questão urbana na agenda nacional

A Carta Maior está abrindo um espaço semanal, que será coordenado pela professora Ermínia Maricato para dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber no debate público. "As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A questão urbana, então, ocupa um espaço prioritário na agenda política nacional. Certo? Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana", explica a arquiteta e urbanista no artigo que abre esta seção.

Enchentes, desmoronamentos com mortes, congestionamentos, crescimento exponencial da população moradora de favelas (ininterruptamente nos últimos 30 anos), aumento da segregação e da dispersão urbana, desmatamentos, ocupação de dunas, mangues, APPs (Áreas de Proteção Permanente) APMs (Áreas de Proteção dos Mananciais), poluição do ar, das praias, córregos, rios, lagos e mananciais de água, impermeabilização do solo (tamponamento de córregos e abertura de avenidas em fundo de vales), ilhas de calor... e mais ainda: aumento da violência, do crime organizado em torno do consumo de drogas, do stress, da depressão, do individualismo, da competição. As cidades fornecem destaques diários para a mídia escrita, falada e televisionada. A questão urbana ocupa espaço prioritário na agenda política nacional. Certo?

Muito longe disso, a questão urbana está fora da agenda política nacional.

As conquistas institucionais nos anos recentes não foram poucas: promulgação do Estatuto das Cidades, aprovação dos marcos regulatórios do saneamento, dos resíduos sólidos, da mobilidade urbana, aprovação de uma enxurrada de Planos Diretores, criação do Ministério das Cidades, retomada das políticas de habitação e saneamento após décadas de ausência do Estado. No entanto, a crise urbana está mais aguda do nunca. Por que?

Numa sociedade persistentemente desigual as cidades não poderiam expressar o contrário. Mas há algo nas cidades que é central e ignorado. Trata-se do poder sobre o “chão”, ou seja, o poder sobre como se dá a produção e a apropriação do espaço físico. De todas as mazelas relacionadas acima, a primeira parte tem a ver com o “espaço urbano” ou com as formas de uso e ocupação do solo, essa evidência que nos cerca no cotidiano das cidades, mas que está oculta para Estado e sociedade. Assim como no campo, a terra urbana (pedaço de cidade) é o nó na sociedade patrimonialista.

A importância do espaço urbano como ativo econômico e financeiro escapa à percepção da maior parte dos urbanistas, engenheiros e economistas no Brasil (exceto dos que trabalham para o capital imobiliário). O valor da terra e dos imóveis varia de acordo com as leis ou investimentos realizados nas proximidades. Poderosos lobbies atuam sobre os orçamentos públicos dirigindo os investimentos e os destinos das cidades. Trata-se do que os americanos, Logan e Molotch, chamaram de “máquina do crescimento”: a reunião de interessados na obtenção de rendas, lucros, juros e... recursos para o financiamento de campanhas, acrescentamos nós. O planejamento urbano é o fetiche que encobre o verdadeiro negócio. É comum que um conjunto de obras contrarie o Plano Diretor. O mais frequente é vermos obras sem planos e planos sem obras.

O governo federal retomou as políticas de habitação e saneamento e se propõe a retomar a política de mobilidade urbana após décadas de ausência promovida pelo ideário neoliberal. Mas a retomada desses investimentos sem a reforma fundiária e imobiliária urbana (de competência municipal) traz consequências cruéis como a explosão dos preços dos imóveis. Durante os 50 anos em que urbanistas e movimentos sociais defenderam a Reforma Urbana, a exclusão territorial foi foi reinventada pelos que lucram com a cidade como ocorreu durante o período do BNH.

Ao contrário de um desenvolvimento socialmente justo e ambientalmente equilibrado, um dinâmico crescimento imobiliário reproduz características históricas de desigualdade e predação ambiental que, somadas ao grande número de carros que entopem a cada dia os sistemas viários, apontam para um rumo de consequências trágicas. Este tema deveria ocupar um lugar central na Rio +20.

Pesquisas recentes da USP ampliaram o conhecimento sobre o número de patologias causadas, na RM de São Paulo, pela poluição do ar, do som, ou pelos congestionamentos de tráfego: doenças cardíacas, transtornos mentais, ansiedade, depressão, estresse. O tempo médio das viagens diárias está próximo das 3 horas, sendo que para um terço da população passa disso. 30% das famílias são chefiadas por mulheres que após a jornada de trabalho chegam em casa e têm que dar conta dos filhos e do serviço doméstico. Tanto sofrimento exigiria repensar a prioridade dada ao automóvel em detrimento do transporte coletivo. Deve haver outras formas de criar empregos e aumentar o PIB sem gerar tal irracionalidade (do ponto de vista social e ambiental) urbana.

Os megaeventos (Copa, Olimpíadas) acrescentam alguns graus nessa febre. Por isso, os despejos de comunidades pobres que estão (e sempre estão) no caminho das grandes obras está ganhando dimensões não conhecidas até agora.

Embora a agenda social tenha mudado nos últimos 9 anos favorecendo ex-indigentes e miseráveis (bolsa família, pró-uni, crédito consignado, aumento do s.m.), embora as obras urbanas se multipliquem a partir do PAC e do MCMV, ambos por iniciativa do governo federal, as cidades pioram a cada dia.. Distribuição de renda não basta para termos cidades mais justas, menos ainda a ampliação do consumo pelo aumento do acesso ao crédito. É preciso “distribuir cidade”, ou seja, distribuir terra urbanizada, melhores localizações urbanas que implicam melhores oportunidades. Enfim, é preciso entender a especificidade das cidades onde moram mais de 80% da população do país e representam algumas das maiores metrópoles do mundo.

A Carta Maior ofereceu um espaço semanal para dar à questão urbana o lugar que lhe deveria caber na agenda política nacional. Na próxima semana leremos alguns dos mais informados e experientes profissionais e estudiosos de políticas urbanas no Brasil, que, além dessas virtudes, se classificam como ativistas de direitos sociais e justiça urbana.

Para seguir a trilha do desenvolvimento urbano, e não apenas crescimento urbano, revertendo o rumo atual, há conhecimento técnico, há propostas, há planos, há leis e até mesmo experiência profissional acumulada no Brasil. Ainda que no espaço de uma sociedade do capitalismo periférico ou “emergente”, como quer o main stream, é possível diminuir um pouco as selvagens relações sociais, econômicas e ambientais que vivemos nas cidades. Antes de apresentar propostas, que são rapidamente repetidas para serem também rapidamente esquecidas, é preciso mostrar porque a formulação de propostas, planos e leis não bastam. A questão é essencialmente política. É preciso mostrar a lógica do caos aparente, ou seja, a lógica dos que ganham com tanto sofrimento e suposta irracionalidade. As próximas eleições se referem ao poder local, ao qual cabe a competência sobre o desenvolvimento urbano de acordo com a Constituição Federal. Esperamos colaborar para diminuir o analfabetismo urbanístico e cobrar dos candidatos a prefeitos e vereadores maior conhecimento e compromisso com a justiça urbana.

(*) Erminia Maricato, arquiteta-urbanista, professora titular aposentada da FAU USP e professora da UNICAMP, é responsável por esta seção.
 http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20298

Quantas são e onde estão as moradias adequadas no Brasil?

Uma das dificuldades de se medir exatamente quais são as necessidades habitacionais do país é a ausência de dados oficiais, universais e produzidos periodicamente sobre a condição urbana dos locais onde as moradias estão inseridas.  O IBGE divulgou recentemente uma novidade do censo de 2010 que são os dados sobre a presença, no entorno dos domicílios, dos chamados “melhoramentos urbanos”.
Pela primeira vez, o órgão buscou informações sobre as características das ruas onde estão os domicílios urbanos. Basicamente, o IBGE procurou saber se as ruas têm nome, se há iluminação pública, arborização, pavimentação, calçadas, guias, rampas de acesso a cadeirantes, bueiros ou bocas de lobo, e também se existe esgoto a céu aberto e lixo acumulado nas ruas.
Analisando os resultados e cruzando estas informações com a renda dos moradores, já era de se esperar que, quanto maior a renda, maior a presença dessas melhorias no entorno. Enquanto na faixa de renda per capita de até ¼ do salário mínimo, menos da metade das ruas têm calçadas e apenas 20% possuem bueiros e bocas de lobo, na faixa de renda superior a 2 salários mínimos per capita  esses mesmos itens estão presentes em 85% das ruas onde estes domicílios estão localizados.
As desigualdades regionais também aparecem claramente nos novos dados divulgados pelo IBGE. O Sudeste e o Centro-Oeste são as regiões com melhores condições no entorno dos domicílios e a região Norte é a que apresenta as condições mais precárias. Na Amazônia, por exemplo, 32% dos domicílios apresentam esgoto a céu aberto, enquanto que no Centro Oeste este índice é de 2,9% e, no Sudeste, de 4,2%.
Outra importante novidade é que o IBGE, também pela primeira vez, estabeleceu critérios de adequação dos domicílios baseados nas condições de saneamento ambiental — se os domicílios estão ou não ligados à rede de água, se possuem ou não soluções de esgoto e coleta de lixo.
Desde 1991, venho participando de pesquisas, com distintas instituições e financiadores, que procuram justamente dimensionar a condição dos domicílios para além das condições físicas da própria casa. Nestas pesquisas, procuramos saber quantos domicílios do país estão ligados simultaneamente à rede de água e de coleta de esgoto, e possuem coleta de lixo, eletricidade, têm banheiro dentro da casa e não mais do que duas pessoas por cômodo. A pergunta fundamental que nos colocamos, usando a base de dados do censo, é: que percentual de domicílios, por município, apresenta todas estas condições simultaneamente?
Nossas pesquisas demonstraram que, em 1991, apenas 23% do total de domicílios no Brasil apresentavam todas as condições de adequação que estabelecemos. Consistentemente, este índice vem aumentando 10 pontos percentuais por década: em 2000, foi de 33% e agora, em 2010, chegou a 43%. Isso significa que menos da metade dos domicílios do país têm uma condição adequada de infraestrutura. E não estamos falando de arborização, pavimentação, calçadas, bueiros, nem, muito menos, de proximidade de áreas verdes, escolas e equipamentos de saúde e culturais.
Além disso, assim como nos dados do IBGE sobre o entorno dos domicílios, estas pesquisas mostram também que a desigualdade regional com relação às condições dos domicílios ainda é muito grande. Nos mapas abaixo, vemos que, em 2000, as cidades que estavam na melhor situação — entre 60% e 87% de seus domicílios (representados pela cor mais escura) com infraestrutura adequada — estão fortemente concentradas na região Sudeste, com avanço em direção ao Centro Oeste.  O mesmo se verifica no mapa de 2010: a faixa mais escura (agora correspondendo a 60% a 90% dos domicílios com infraestrutura adequada), que corresponde a cidades onde os domicílios estão em melhores condições, continua concentrada no Sudeste. Os mapas também mostram claramente o sério problema de inadequação dos domicílios localizados em municípios das regiões Norte e do interior do Nordeste.
De forma geral, percebemos que, por um lado, há uma região chegando perto da universalidade, com base nos critérios de adequação adotados pela pesquisa, mas outras estão ainda muito longe de alcançar bons índices. Outra questão importante é que, a análise do mapa nesta escala pode enganar, pois mesmo na região Sudeste há precariedade, muito relacionada à renda. Além disso, olhar todos esses dados não esgota a discussão sobre as condições dos domicílios, que não podem se resumir apenas às condições de infraestrutura, devendo incluir também questões como o acesso a transporte e equipamentos públicos, que a base de dados do censo hoje não nos permite aferir. Ainda faltam elementos, portanto, para que possamos afirmar com certeza quantas e onde estão as moradias adequadas em nosso país.


Texto originalmente publicado em Yahoo!Blogs.
http://raquelrolnik.wordpress.com/2012/06/08/quantas-sao-e-onde-estao-as-moradias-adequadas-no-brasil/

sábado, 2 de junho de 2012

Por um Código de Processo Civil que respeite a Função Social da Propriedade




Ocupação Manoel Congo (RJ)
Ocupação Manoel Congo (RJ)
Por um Código de Processo Civil que respeite a Função Social da Propriedade

O Congresso Nacional está discutindo o Projeto de Lei nº 8046/2010 que irá alterar o Código de Processo Civil (CPC), instrumento que, entre outras coisas, regula o procedimento que o Juiz e os demais poderes públicos devem adotar nos casos de conflitos fundiários. Frente a milhares de famílias ameaçadas de despejo por medidas liminares em todo Brasil, o Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU) promove a campanha “Função Social da Propriedade Urbana: a cidade não é um negócio, a cidade é de todos nós” em apoio às propostas de Emenda ao projeto do novo CPC, relativas aos conflitos fundiários. 

O Fórum Nacional de Reforma Urbana, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDMH) e a Frente Parlamentar pela Reforma Urbana convidam para o lançamento da campanha pela “Função da Propriedade Urbana: a cidade não é um negócio, a cidade é de todos nós” no dia 05 de junho, em Brasília, das 14 às 16h. Local: Plenário 9, anexo 2 da Câmara dos Deputados.

Segundo a coordenação do FNRU, o que se tem visto no caso de conflitos fundiários como regra geral são as ordens liminares de reintegração de posse imediata, com o uso de força policial, nas áreas ocupadas para fins de moradia e reforma agrária por famílias de baixa renda. Casos como da remoção violenta das famílias da comunidade de Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), foi um exemplo extremo do ocorre continuamente no Brasil.

Nesse contexto, a alteração do Código de Processo Civil é uma necessidade urgente para garantia dos Direitos Humanos e da Função Social da Propriedade. Essa estratégia une campo e cidade, na busca por justiça, por acesso à terra e moradia. De acordo com o FNRU, já existe uma proposta de emenda de nº 323/2011 com o relator da Reforma do CPC  que precisa ser ampliada para conter todos os pontos necessários para se evitar a execução de despejos expressos por via das liminares que ocasionam violações aos direitos humanos.

Na campanha das entidades vinculadas ao FNRU, as emendas defendidas à nova lei propõem mecanismos de prevenção e mediação dos conflitos fundiários rurais e urbanos  como as audiências com famílias afetadas, a participação do Ministério Público, da Defensoria Pública, entre outros atores,  obrigando  judiciário  a verificar o cumprimento da  função social da propriedade. As populações ameaçadas demandam dos entes públicos a implementação de políticas públicas para avançar na reforma urbana e agrária, com a efetiva aplicação da função social da propriedade. 

O FNRU realiza um Abaixo assinado em defesa de um Código de Processo Civil que respeite os direitos humanos e garanta a função social da propriedade.


PROPOSTAS
1°) Ampliar participação do MP:

O Art. 156 do PL 8.046/2010 passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art.156......................................................
III – nas ações que envolvam litígios coletivos de posse e propriedade sobre imóveis rurais ou urbanos, e demais causas que há interesse social evidenciado pela natureza da lide ou qualidade da parte, com vistas à adoção das medidas legais de proteção das pessoas físicas ou jurídicas pertencentes a grupos vulneráveis ou de baixa renda”.
2°) Audiência prévia antes das medidas de urgência 
O Art. 2º - O Art. 270 do PL 8.046/2010 fica acrescido dos § 2°, renumerando-se o atual parágrafo único, com as seguintes redações:
“Art. 270 .....................................................
§ 2º A medida de urgência será precedida de audiência de justificação prévia nos casos que envolvam interesses ou direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, a ser realizada em 72 (setenta e duas) horas, para a qual devem as partes ser notificadas.
3º) Função Social da Propriedade

Art. 3° - O Art. 547 do PL 8.046/2010 fica acrescido do inciso V, com a seguinte redação:
“Art. 547 
V – o cumprimento da função social da propriedade”. 


4°) Liminares, audiência e órgãos 

Inclua-se o seguinte artigo 548-A ao PL nº 8.046/2010:
Art. 548-A. Nos casos de litígio coletivo pela posse e propriedade de imóvel urbano ou rural, antes do deferimento da manutenção ou reintegração liminar, o juiz deverá designar audiência de justificação prévia e conciliação entre as partes, seus representantes legais, com a participação do Ministério Público e dos órgãos responsáveis pela política urbana e agrária, que deverão para este fim ser notificados.
§ 1º o juiz também deverá, antes da decisão liminar, requisitar aos órgãos da administração direta ou indireta dos Municípios, Estados e União que forneçam as informações fiscais, previdenciárias, ambientais, fundiárias e trabalhistas referentes ao imóvel; 
§ 2º Será intimada a Defensoria Pública para a audiência de conciliação prévia, caso os envolvidos não tenham condições de constituir advogado.
§ 3º A liminar poderá ser concedida somente após a averiguação do cumprimento da função social da propriedade. 
§ 4º Caso as partes não alcancem conciliação nos termos do caput, o juiz deverá fazer-se presente na área do conflito coletivo pela posse da terra rural e urbana, acompanhado de representante do Ministério Público.
§5º Quando o litígio individual envolver população de baixa renda aplicar-se-á o § 2º.