No contexto de megaeventos no Brasil, bairros de periferia são cenário de cerco policial, repressão e especulação imobiliária. Em meio a isso, há uma grande demanda reprimida por moradia no país. Lógica do poder não sabe lidar com esses conflitos. Pedro Carrano, de Curitiba (PR) – (Colaborou: Venâncio de Oliveira)
As 12 comunidades e vilas do bairro do Uberaba, na periferia de Curitiba, trabalhadores e habitantes do local conheceram a experiência de uma “ocupação” de cerca de 450 policiais, um operativo denominado Unidade do Paraná Seguro (UPS), projeto piloto cuja comparação é inevitável com o modelo da contraditória Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), do Rio de Janeiro. Ao longo de uma semana de cerco policial no bairro – que prossegue até o momento – foram presas 17 pessoas, três delas no dia da invasão da PM, com o pretexto de combate ao tráfico e à violência. Mais de duas mil e quinhentas abordagens foram feitas, para apenas 34 mandados de busca e apreensão cumpridos. Ao final, não houve apreensão de drogas e armas. Cerca de 300 policiais permanecem na área para a instalação da UPS.
Há suspeitas, por parte de pesquisadores do tema, que esses fatos tenham relação com possíveis remoções futuras em áreas de ocupação irregular, tendo como foco a “higienização social” e o terreno limpo para a vinda de turistas durante a Copa do Mundo, uma vez que o bairro está no corredor entre o aeroporto e o centro da capital. Há locais em Curitiba com maior índice de violência, uma vez que o Uberaba é a região considerada a terceira mais violenta de Curitiba. É certo que outras experiências como essa estão no horizonte do governo do Paraná. Até o final de 2012, Curitiba deve contar com 10 UPS. No interior do estado, entre 20 e 25 cidades devem receber a experiência até 2014, de acordo com declarações do secretário de Segurança Pública, Reinaldo de Almeida César.
Entidades de Direitos Humanos repercutiram a denúncia de que o servente de pedreiro Ismael Ferreira da Conceição, jovem afrodescendente de 19 anos, foi preso sem motivo e torturado por policiais militares. O poder, por sua vez, esquiva-se e classifica que o caso não repercute na totalidade da UPS. Embora a divulgação tenha sido de uma suposta tranquilidade do operativo, como se expressaram os veículos de mídia corporativa, entusiastas da ação, caso da RPC (filial da Rede Globo), as fotografias de fuzis apontados para moradores, em casas extremamente simples, deixa no ar a desconfiança sobre o método da ação. Denúncias de pessoas que realizam trabalho social no Uberaba apontam que moradores são usados para que a polícia chegue aos pontos de tráfico. “Na primeira semana, eles mostraram terror, apontando a metralhadora para todo mundo, intimidando no ônibus, inclusive o meu filho foi tratado como se fosse suspeito. Essa semana já houve um assassinato. Partem do princípio de que todos são bandidos”, descreve uma professora, moradora da região.
“Nossa leitura é de que há uma ‘policização’ das relações sociais e de polícia, relação social que não apresenta para a comunidade Educação, Saúde, não leva creches para a população. As políticas de assistência social não precisam de polícia, mas o discurso é como se fosse necessário primeiro esse tipo de ação”, reflete André Giamberardino, pesquisador do núcleo de práticas jurídicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Na análise dele, a criação de um contexto de medo interessa ao capital privado. “O medo do crime se tornou uma matéria-prima que dá origem a vários produtos, um deles é o voto. Apela para a emoção da pessoa e produz muito lucro, por meio do mercado da segurança privada, que representou o segundo maior lucro dos últimos anos de empresas privadas no Brasil”, afirma.
É preciso levar em conta nesses casos de repressão direta, ou então em ações de militarização territórios comandados pelo Estado, como é o caso das UPPs, o fato de serem levadas a cabo principalmente por governos declaradamente direitistas, como é o caso de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo, governados pelo PSDB ou por governadores da base conservadora do governo, como acontece no Rio. Outro fator decisivo, os interesses das imobiliárias financeirizadas têm peso grande em ações de despejo como a que foi feita na Cracolândia, em São Paulo, na mesma semana da repressão contra os moradores do Pinheirinho, na cidade de São José dos Campos, cujo terreno, pertencente ao mega-especulador Naji Nahas já está cotado em R$ 500 milhões após o despejo. “(…) tem-se em grande medida aumentado o espraiamento urbano, com conseqüências para o meio ambiente, os transportes e a infraestrutura, além da especulação imobiliária em curso, sem controle estatal algum. Os instrumentos do Estatuto da Cidade não têm sido quase utilizados, de modo que não há freios para a renda da terra crescer. O mercado imobiliário tem uma particularidade, quanto mais se produz mais caro fica o produto, ao contrário da produção industrial de bens de consumo. Isso porque há escassez de terras. Se não houver uma regulação pública, a máquina de crescimento imobiliário vai se travar ou vai voltar a concentrar seu mercado. O que estamos assistindo é uma verdadeira anti-reforma urbana e a privatização da política habitacional”, afirma o urbanista Pedro Arantes, em entrevista por email ao Brasil de Fato, ao analisar o quadro atual dos programas de moradia e do acesso do povo a eles.
E qual é o modelo?
A construção midiática em torno da ocupação policial – ou seria o caso de usar o termo ‘invasão’? – de bairros como o Uberaba, a fim de construir um consenso entre a sociedade e entre os próprios moradores, encobre um modelo de gestão que lida com os problemas sociais sem parecer entender suas reais necessidades. É como se o próprio poder colocasse a população sob sua tutela, segundo suas regras e sempre com o limite anunciado da repressão. “Trata-se de um modelo de polícia. A UPP do Rio de Janeiro parte da premissa de que seria possível compatibilizar o modelo de polícia comunitária com o da polícia militarizada. Porém, o sujeito é treinado para a guerra e não para fazer o modelo de polícia comunitária. É preciso uma reforma profunda na estrutura de polícia no Brasil, pois esse modelo de militarização decorre de outra época”, critica André Giamberardino, da UFPR.
No caso específico de Curitiba, mas também de maneira geral, o poder público retruca que não há outro caminho, embora se recuse a taxar como militarização ações como a criação das UPS. “Esse caso de tortura tocou o projeto da UPS, pela proximidade geográfica, por ser morador do Uberaba. Só acho injusto dizer que isso ocorreu pela UPS. Eu fui lá domingo [passado]. Pude ver a alegria das pessoas e vi o orgulho da tenente Carolina [Costa], que coordena o trabalho lá (…)”, justificou o Secretário de Segurança do Estado, Reinaldo de Almeida César, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, questionado sobre a tortura contra um jovem negro.
Abre alas para o Capital
A relação desse e de outros tantos episódios com os megaeventos, sobretudo no caso do Rio de Janeiro, demonstra um modelo voltado a serviço do mercado, e não das necessidades de moradia ou outros serviços básicos para a população. “São projetos que respondem tão somente à questão da Copa, pautados pelas diversas empresas e corporações, segundo determinados requisitos do mercado. Salvador, Rio de Janeiro tornaram-se cidades commodities, isso tem a ver com a criação de espaços higienizados”, diz o especialista Pedro Bodê, do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR.
A hipótese de Bodê não está congelada em alguma análise sociológica estéril. Está nos fatos. Informações do jornal Estado de São Paulo (fevereiro), apontam que uma gama de empresas de serviço, a exemplo da Sky, de TV por assinatura, além dos ramos de telefonia e energia elétrica, tem lucro imediato, quase instantâneo, em situações de militarização dos territórios pobres. Assim que as forças policiais ocuparam o complexo de São Carlos, na região central do Rio de Janeiro, 140 funcionários entraram no conjunto de comunidades e, em quatro dias, fecharam mil assinaturas. A visão de Thiago Hoshino, membro da Articulação Nacional do Comitê Popular da Copa do Mundo, corrobora para a análise de prioridade do mercado e dos espaços higienizados em favor do Capital. “As favelas são a reserva de terras que o Capital deixa para os pobres, especulando enquanto interessa, por isso não dá a escritura e a propriedade para eles”, afirma. Hoshino elenca o exemplo de que as UPPs no Rio de Janeiro receberam investimento particular do megaempresário Eike Batista, no valor de RS 30 bilhões.
Os novos e os antigos Pinheirinhos
Parte da classe trabalhadora que expandiu seus rendimentos tem acesso à moradia por meio de programas de financiamento. No entanto, camada que possui entre 1 a 3 salários mínimos ainda está apartada do acesso à moradia digna
Denise Franciscato tem 18 anos, é casada e vive de aluguel, que devora boa parte do seu trabalho assalariado de R$750, como auxiliar administrativa em uma fábrica na zona sul de Curitiba – a mesma profissão do marido, afastado por acidente de motocicleta. Esse é o mesmo caso de Gislaine, 22 anos. Ambas dividem espaço em uma área de ocupação em Curitiba, na Cidade Industrial de Curitiba, organizada há três semanas, que se expandiu como rastilho de pólvora e reuniu jovens assalariados com o mesmo perfil das duas amigas. Calcula-se mais de 1000 pessoas passaram a ocupar a área, sob a esperança difusa de abandonar o aluguel ou a moradia de favor. “Cohab é ilusão. Até o financiamento do programa Minha Casa Minha Vida é caro”, as duas avaliam. Em comum, a inserção das duas amigas no mundo do trabalho, algo assim mesmo insuficiente para comprar o acesso à moradia.
“No Brasil, como em toda a América Latina, a diferença entre o preço da terra urbanizada e a capacidade de compra dos salários sempre foi muito alta. Daí que a informalidade é a regra e não a exceção, e as favelas e as periferias foram sendo auto-construídas pelos seus moradores. Trata-se de uma ilegalidade em grande medida consentida pelo sistema pois, com isso, o Estado se desincumbe de parte dos custos de reprodução da classe trabalhadora e as empresas podem pagar salários mais baixos”, analisa o urbanista Pedro Arantes.
Logo na manhã do fechamento da reportagem (12), a ocupação na Cidade Industrial foi despejada por um operativo de 320 Policiais Militares, ao lado do Batalhão de Choque e da Guarda Municipal de Curitiba, em terreno que se revelou pertencente à Prefeitura de Curitiba. O comandante do operativo, o major da Polícia Militar, Antônio Zanata Neto, afirmou que o operativo teve caráter pacífico, o que repercutiu em todos os canais de TV. Porém, os moradores reclamam do uso de gás lacrimogêneo antes mesmo do diálogo com as lideranças da ocupação. “Não teve conversa e a polícia foi soltando bomba, não é isso que o povo merece, não estamos querendo ficar aqui de graça. Havia mulheres grávidas na ocupação e soltaram bombas, numa guerra de um só”, lamenta um operário de indústria química, chamado Cesar.
Necessidades básicas
Uma pergunta que os analistas e cientistas sociais ainda deixam em aberto se refere às necessidades desse segmento da classe trabalhadora, que nos últimos anos teve acesso ao emprego, que aumentou seu rendimento e a demanda por direitos básicos essenciais, para além do acesso à renda e ao consumo.
Como se viu até aqui, a mobilidade social e a ainda tímida movimentação da classe trabalhadora não foi bem digerida pelo Poder, que responde com repressão, sem saber lidar com esta nova dinâmica social. Também do ponto de vista das necessidades materiais, a questão não está resolvida. A principal delas talvez seja a questão do acesso à moradia, problema que não se resolve apenas com o pequeno aumento no rendimento do trabalho e maior acesso ao consumo. A questão segue pendente. E a demanda, reprimida. Nos seus locais de trabalho, a insatisfação está evidente com as recentes greves por aumentos salariais e melhores condições. Porém, qual a necessidade dos trabalhadores hoje em relação à Saúde, Moradia, Saneamento, Educação, Transporte, Cultura?
Programas não contemplam os “de baixo”
A análise do urbanista Pedro Arantes aponta que houve pequena mobilidade na relação entre as massas populares e o acesso à moradia, mas especifica qual fração conseguiu essa inclusão: “enquanto o mercado imobiliário se concentrava no topo da pirâmide social, nas chamadas classes A e B (acima de 10 salários mínimos de renda familiar), na última década houve um alargamento do mercado para incluir estratos até 6 salários”, descreve. São dois segmentos diferentes, de acordo com Arantes. “O MCMV atende em duas modalidades: oferta de mercado com incorporação imobiliária e subsidiada pelo governo para a faixa de 3 a 10 salários mínimos (a chamada Classe C). Construção privada direcionada para atendimento a demanda dirigida abaixo de três salários mínimos (Classes D e E), organizada em imensas filas pelas prefeituras em função de prioridades de atendimento (áreas de risco, remoções, mulheres chefe de família, idosos etc)”, explica.
Portanto, a tão propalada “classe C” teve acesso ao mercado imobiliário, via mecanismo financeiro, ao passo que, para as pessoas com renda entre 1 a 3 salários mínimos a oferta ainda é insuficiente, confinadas nas periferias-extremas e sem condições dignas de vida. Daí talvez a resposta para os de insatisfação deixada pelo programa Minha Casa, Minha Vida. “A emergente Classe C, que cresceu em ritmo chinês nos anos Lula, e teve acesso a bens de consumo que não tinha antes, está sendo atendida pelo MCMV e a previsão é de quase zerar o déficit habitacional para as famílias com renda acima de 1,6 mil reais. Acontece que o grosso do déficit (87%) está situado nas Classes D e E, que será muito menos atendida e, quando atendida, com empreendimentos habitacionais muito piores”, define Arantes.
Os dados da fila da Cohab, em Curitiba e na Região Metropolitana, que refletem a demanda reprimida por moradia, encaixam com perfeição dentro da análise acima. A maior faixa salarial inscrita na fila da Cohab percebe de 01 a 02 salários mínimos. No total são 27 mil pessoas, ou 31,58% das famílias inscritas, seguidas de 24.166 pessoas com renda mensal de 02 a 03 salários mínimos, ou (28,26% dos inscritos). Trata-se de um total de 85.516 pessoas. O número de inscritos na fila da Cohab-Curitiba teve um salto gigantesco a partir de 2009, possivelmente vinculado ao lançamento de programas governamentais, tais como o Minha Casa, Minha Vida. De 2.355 pessoas (2002), a procura passou a 15.198 nomes (2011) apenas na capital paranaense.
Desse modo, se arrola para o futuro o problema de exclusão e desigualdade brasileira: o grande déficit habitacional, a especulação imobiliária, os monopólios territoriais. “São essas pessoas que estão indo para ocupações de terra, os antigos e novos Pinheirinhos. São os que não têm condições de ir num estande de vendas de habitação econômica de mercado para comprar sua casa nova e ficam em filas intermináveis do governo, sem saber quando vão ser atendidos. E são os que têm as condições mais precárias de moradia, em áreas de risco, favelas, cortiços etc. São esses ‘danados da terra’ que recebem o Bolsa Família e outros programas sociais, mas que não estão sendo incluídos com a mesma proporção e velocidade que a Classe C”, aponta Arantes.