quinta-feira, 18 de abril de 2013

Como nasce uma ocupação urbana



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Na zona norte de Porto Alegre, em julho do ano passado, mais de 250 famílias entraram em um terreno para fundar um bairro, o Loteamento São Luiz. O Tabaré contou essa história na edição de novembro de 2012. Nessa quinta-feira, dia 18 de abril, os moradores da São Luiz vão protestar em frente à prefeitura de Porto Alegre, às 9h, contra uma possível reintegração de posse que pode tirá-los da terra conquistada. Confere a matéria pra saber mais sobre essa ocupação urbana:
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Segundo o último censo do IBGE, o Brasil dispõe de 6,07 milhões de domicílios vagos. Nos classificados de jornais, o mercado imobiliário chove uma enxurrada de ofertas: quitinetes, casas, apartamentos; um, dois, três, quantos dormitórios você quiser; poucos metros quadrados, muitos metros quadrados; dependência de empregada; área de serviço; sacada; bem arejado; churrasqueira; vaga de garagem; playground; bem localizado; perto do Centro; porteiro 24 horas… Tudo isso por apenas: centenas de milhares de reais. Venha conferir!
O Brasil tem um déficit habitacional de 5,8 milhões de moradias1. Apesar disso, uma parcela relativamente pequena da população vai conferir as ofertas dos classificados. Milhões de brasileiros não têm condições de pagar o preço de uma moradia digna. É verdade que muitos têm conseguido um lar razoável através do programa do governo federal Minha Casa, Minha Vida, que financia sob juros diminutos a compra de um imóvel. No entanto, muitos outros são obrigados a escolher – “minha casa ou minha vida” – pois as duas opções simultâneas são incompatíveis com a baixa renda. Esses cidadãos engrossam as estatísticas dos sem-teto.
Em Porto Alegre, estima-se que faltam 35 mil habitações para a população carente. Diante de tantas “inabitações”, os sem-teto acabam por ocupar, entre outros espaços, terrenos ociosos da cidade. É o caso de uma área de aproximadamente 12 hectares, localizada na zona norte da Capital, entre a avenida Baltazar de Oliveira Garcia e a rua Dr. Paulo Smania. Lá, desde o mês de julho, 257 famílias se instalaram no lugar: limparam o terreno, abriram ruas e construíram casebres. Por conta da necessidade, está surgindo um novo bairro em Porto Alegre: o Loteamento Seu Luiz.
A associação de moradores
Sábado. Tarde ensolarada de verão. Venta bastante na zona norte. Entro na ocupação pela avenida Baltazar. Ando por uma rua de terra, íngreme. Essa parte do terreno é a mais baixa. Há um pequeno alagadiço aqui. Alguns homens, pá e enxada em mãos, escavam um buraco transversal na via, onde colocam uma tubulação de esgoto de mais ou menos 50 centímetros de diâmetro. Outros, com ajuda da família, edificam pequenas casas de madeira. Pergunto a um sujeito quem é o responsável pelo loteamento. Ele aponta para a parte mais alta da área: “Lá em cima fica a associação de moradores.” Caminho ladeira acima. Em cada lote de terra, a cena se repete: homens e mulheres constroem casas.
Do alto do morro, Pedro Álvares Valêncio e Leandro Otenir Ribeiro Ribas coordenam a ocupação no Loteamento Seu Luiz (nome provisório e informal, visto que a posse da área ainda é incerta). Eles assentaram os primeiros moradores no terreno – cerca de 20 pessoas – em 23 de julho. Fundaram a associação de moradores no local, que, entre outras funções, cuida da distribuição dos lotes disponíveis. Pedro é o presidente; Leandro, o vice.
bairro_julia5“Seu Pedro” me convida para sentar na varanda da associação, uma construção de cerca de 10 metros quadrados, chão batido, teto de zinco. Logo que nos acomodamos, apresenta-me seu currículo: 59 anos, eletricista industrial aposentado, ex-militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), ex-preso político, trabalha com organização popular há aproximadamente 30 anos; já liderou loteamentos que deram origem aos bairros São Borja, Parque dos Maias, Vitória da Conquista, etc.; segundo sua própria estimativa, assentou cerca de 20 mil famílias até hoje (tenta começar uma ocupação a cada ano). Ele anda com auxílio duma muleta. Apesar da perna direita comprometida, exibe simpatia, disposição, senso crítico e marxismo. Admira a China – país que inspirou a política pecebista nos anos 1960. Não mora na ocupação. Possui uma casa num bairro que ajudou a consolidar: Vitória da Conquista. De qualquer forma, parece ser respeitado pelos moradores do lugar.
Leandro se junta à conversa. Ele é o braço direito de seu Pedro. Tem 37 anos. Apresenta personalidade um pouco mais séria. Sempre disposto. Alugava uma sala no bairro Rubem Berta, onde administrava um bar. Também tem experiência em outras ocupações. Construiu sua casa no loteamento, onde reside com a esposa. Parece ser muito considerado pelos moradores. Em muitos casos, parece ter amizade – sobretudo com os mais jovens. Procura estar informado sobre tudo que acontece na área. Conhece os problemas e dilemas dos moradores.
Eles centralizam a organização da ocupação na associação de moradores, que promove reuniões periodicamente. A agremiação tem papel crucial na manutenção do assentamento: seleciona os interessados em ocupar um lote, fornece água e energia elétrica, aluga as escavadeiras para abrir ruas, contrata o advogado que move a ação pela posse da terra.
– Quando chega alguém aqui, perguntando se existe algum lote disponível, nós fazemos uma seleção: primeiro averiguamos se o sujeito tem problemas com a Justiça, depois vemos se ele realmente precisa do lote. Se o cidadão não é criminoso e realmente precisa de um lugar para morar, aí cedemos o espaço. Mas explicamos quais são as condições: o morador é responsável pela limpeza do seu terreno, pela construção da sua casa, pela construção de uma fossa para o banheiro, e tem que morar na casa que construir. A gente faz essa triagem por dois motivos: para evitar que ocorram coisas ilícitas no loteamento; e para evitar que alguém adquira um lote e depois venda para terceiros – explica Leandro.
A associação de moradores cobra três taxas mensais: 40 reais pelo fornecimento de água, 40 reais pelo fornecimento de energia elétrica, 100 reais para as despesas da agremiação. “A mensalidade da associação é usada para contratar o maquinário para construir a infraestrutura do bairro e pagar o advogado”, garante seu Pedro.
A água e a luz vêm de extensões (“gatos”) instaladas na rede hídrica da Corsan e na rede elétrica da CEEE. A água é distribuída por uma teia quilométrica de mangueiras espalhadas pelo chão do loteamento. A eletricidade é distribuída por meio de uma fiação aérea, suspensa em postes construídos pela própria associação.
Contudo, os pagamentos atrasam, o que obriga a associação de moradores a executar um contorcionismo financeiro:
– Todo mundo que mora aqui é pobre. Tem gente que junta todo o seu dinheiro para comprar o material de construção para a sua casa. Aí fica sem dinheiro para pagar as despesas com a associação. A associação consegue fornecimento de madeiras por um preço reduzido. Mas, mesmo assim, tem gente que não consegue pagar a mensalidade. Alguns moradores não têm nem o que comer. Volta e meia, a associação organiza um “sopão” para alimentar essa gente. Então, diante dessa situação, a gente faz assim: quem pode pagar um pouquinho a mais, paga mais; quem precisa pagar um pouquinho a menos, paga menos; em outros casos, a associação deixa o morador pagar quando puder. Mas, assim, a maioria dos moradores paga em dia a mensalidade – relata Seu Pedro.
No final da entrevista, um homem se aproxima. Ele aparenta ter uns 50 anos: pele queimada do sol, corpo arquejado, mãos calejadas, expressão melancólica rasurada por algumas rugas salientes; se veste com roupas desbotadas; origem humilde. Interpela:
– Com licença, Seu Pedro. Vim lhe entregar o dinheiro que o Fulano (não me recordo o nome) ficou devendo para a associação. Ele tem que pagar 300 reais, mas só tinha 150 no momento. Ele disse que não pode pagar o resto agora, porque a esposa ficou doente. Mas, assim que tiver, vai pagar.
– Não tem problema. Depois eu faço o registro no livro da associação. Melhoras para a esposa dele – responde Seu Pedro.
bairro_julia4A comunidade faz o bairro
Tarde de quinta-feira. Sol forte. O vento suaviza o calor. Leandro me conduz por uma caminhada pelas ruas da ocupação. Enquanto andamos, vemos alguns jovens trabalhando em suas casas. O vice-presidente da associação de moradores cumprimenta todos pelo nome. Recebe saudações recíprocas. Crianças correm de um lado para outro. Ele me conta a história da ocupação. O mesmo relato que outros moradores já haviam contado.
Quando os primeiros moradores chegaram à área, o terreno estava baldio: árvores, arbustos, capins por todos os lados; pássaros, cobras, ratazanas entre a vegetação; carcaças de carros, motos e outros entulhos abandonados num declive. Em mutirão, limparam uma parte da área, onde foram divididos os primeiros lotes. Nas semanas seguintes, quando outras famílias já haviam se juntado à ocupação, contrataram escavadeiras para abrir ruas e buracos – onde os próprios moradores instalariam a tubulação de esgoto. Os postes de luz também foram fixados pelos primeiros ocupantes. Embora a associação de moradores forneça alguns serviços básicos, em geral, a estrutura pública do loteamento é construída de maneira coletiva.
A maioria das habitações se resume a um cômodo. São casas precárias. Algumas moradias têm paredes improvisadas com chapas de compensado, teto coberto com lonas, piso de chão batido. Outras têm paredes de madeira, teto de zinco, piso em tablado rústico. Uma ou outra está sendo edificada com tijolos. O banheiro costuma ficar do lado de fora das residências.
Em alguns casebres, Leandro propõe que paremos para conversar com os moradores. As histórias de vida são muito parecidas: a família morava de favor na casa de alguém, ou morava num local insalubre, ou foi despejada por não pagar o aluguel. A maioria dos homens tem emprego: trabalham durante o dia, de segunda à sexta-feira; à noite e finais de semana, trabalham na construção das casas e bairro. Durante os dias de semana, é mais comum ver crianças e mulheres desempenhando afazeres domésticos, do que ver homens construindo moradias.
Em alguns lotes, há apenas um esqueleto de edificação e um amontoado de tábuas no terreno. Ninguém trabalhando. Leandro comenta:
– Tem gente que não acredita que a ocupação vai dar certo. Algumas pessoas pegam um terreno aqui, mas depois desistem de construir suas casas, porque acham que a gente não vai conseguir a posse da terra. São pessoas que não querem fazer um investimento numa coisa incerta. Mas tem que acreditar senão a ocupação não vai dar certo mesmo.
A disputa pela posse do terreno
Hoje, quem possui a escritura da área de 12 hectares é o empresário de Alvorada Valdir Oliveira Silveira, conhecido na região como “Foguinho”. Valdir comprou o terreno em 1989, quando o posseiro – agricultor Alencorte Machado Feijó – lhe transferiu a escritura originária de 1949. A transferência dos direitos possessórios aconteceu em seis de setembro, no tabelionato da comarca de Alvorada situado então na rua Salgado Filho, nº 118. O registro do tabelião Cícero Pereira Baptista atesta que o agricultor e o empresário compareceram ao tabelionato. Entretanto, os moradores da ocupação questionam o documento.
Leandro possui uma cópia da certidão de óbito do agricultor. O documento declara que Alencorte faleceu às 19 horas e 30 minutos do dia seis de setembro de 1989 (mesma data em que ocorreu a transferência da escritura). Causa mortis: “insuficiência respiratória, pneumonia aspirativa, diabete melito tipo II.”
– Como pode alguém que está tão doente, a ponto de morrer no mesmo dia, comparecer em um cartório? Ele não deveria continuar internado no hospital? – indaga Leandro.
A Justiça, no entanto, decidiu pela reintegração de posse a favor de Valdir. Porém o despejo não aconteceu. Os moradores dizem que eles não foram tirados do local porque faltaram equipamentos para desmanchar as casas. O empresário contesta:
– A Justiça já deu quatro reintegrações de posse a meu favor. Não sei por que razão a decisão judicial não foi cumprida. Talvez o oficial da Brigada Militar tenha se sensibilizado. Não sei o que os invasores disseram para ele. Isso só acontece no Brasil: quatro reintegrações de posse e ainda não foi cumprida a decisão da Justiça. Mas, de agora em diante, vou usar outros meios. Meios constitucionais, inclusive. Da mesma maneira que um cidadão pode tomar uma atitude quando alguém invade sua casa, vou tomar uma atitude para expulsar os invasores da minha propriedade.
Recentemente, os moradores da ocupação descobriram que o terreno onde querem fundar o Loteamento Seu Luiz é uma reserva de contenção ambiental, pertencente ao município de Porto Alegre. Valdir afirma que já tinha conhecimento a esse respeito. E diz que vai denunciar os “invasores por crimes ambientais, afinal de contas, eles desmataram toda aquela área.”
De fato, hoje há pouca vegetação no local. Talvez a prefeitura da capital tenha que rever, de agora em diante, a classificação de reserva de contenção ambiental. De qualquer forma, quem ficar com a posse da terra terá menos dificuldades para realizar algum empreendimento naqueles 12 hectares. A função ecológica do terreno certamente não existe mais. Sendo assim, qual a função que a áea terá no futuro? Habitacional ou privativa?
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1 – Cálculo do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD – 2010) do IBGE. O número corresponde a todas as moradias necessárias para alojar os brasileiros que não tem onde morar ou moram em habitações inadequadas.
Texto: Marcus Pereira  / Fotos: Júlia Schwarz